Desde o jantar com Jonas, meus dias ganharam outra cor. Não era nada oficial entre nós, e talvez nem precisasse ser. Era como se duas almas cansadas tivessem encontrado um abrigo uma na outra — silencioso, seguro, sem pressa.
Mas felicidade, às vezes, é barulhenta para quem nunca te viu sorrir de verdade.
Clara foi a primeira a notar.
Estávamos na cozinha, lavando a loiça do almoço de domingo. Mamã nos deixara sozinhas com aquele tipo de silêncio que grita mais do que qualquer frase dita. Até que ela falou:
— Tu estás diferente.
Parei por um segundo. — Diferente como?
Ela enxugou um copo com mais força do que o necessário. — Não sei. Mais leve. Como se tivesse tirado um peso das costas.
Respirei fundo. Estava pronta para aquela conversa, mas não queria conflito.
— Talvez porque eu tenha mesmo tirado.
Ela olhou para mim, séria. — Por causa dele?
— Também — respondi. — Mas não só por isso. Estou me escolhendo, Clara. Pela primeira vez.
O silêncio que se seguiu foi quase doloroso.
— Eu fico feliz por ti — disse ela, finalmente, mas com um tom que parecia conter uma ponta de culpa. — Só... me assusta como parece fácil para ti seguir em frente.
Soltei a esponja e me virei de frente. — Fácil? Achas que foi fácil viver aqui todos esses anos sentindo-me como uma lembrança que ninguém queria lembrar? Achas que é fácil me apaixonar de novo com medo de que tudo vá ruir outra vez?
Ela baixou os olhos. — Desculpa, Isabel. Eu só... às vezes ainda estou presa nas versões antigas de ti.
Abracei-a. Pela primeira vez em muito tempo, sem barreiras. E ela chorou. Choramos. Como irmãs que, finalmente, se permitiam ser vulneráveis juntas.
— Estamos todas tentando — sussurrei. — E isso já é um começo.
Naquela semana, Miguel me ligou. A voz dele estava tensa.
— Ouvimos dizer que tens saído com o Jonas.
Não era uma pergunta. Era uma constatação carregada de desconfiança.
— Sim. E?
— Achei que fosse... cedo demais.
Fechei os olhos, tentando controlar a irritação.
— Cedo demais pra quê, Miguel? Pra tentar ser feliz?
— Pra confiar — ele rebateu. — Tu estiveste sozinha por tanto tempo. E agora, de repente, confias nele?
A vontade de gritar veio como uma onda, mas respirei fundo.
— Eu nunca estive sozinha por escolha. Fui deixada sozinha. E agora que alguém me estende a mão, tu queres me dizer que devo recusar?
Do outro lado da linha, silêncio.
— Miguel, eu amo vocês. Mesmo com tudo. Mas não vou pedir permissão para viver.
Desliguei com o coração acelerado. Doeu. Mas era preciso.
Nos dias seguintes, Jonas foi meu porto. Cada vez que nos encontrávamos, falávamos de coisas leves, mas também das sombras que ainda rondavam. Ele me ouvia como ninguém. Não para responder, mas para entender.
Uma noite, sentados no banco do parque onde costumávamos ir na adolescência, ele disse:
— Sabes o que mais admiro em ti?
— Diga — respondi, olhando para o céu.
— Que mesmo depois de tudo, tu ainda estás aqui. Ainda acreditas. Ainda dás chance para o amor.
Virei-me para ele, sorrindo.
— E tu sabes o que mais admiro em ti?
— O quê?
— Que não tentas me consertar. Só caminhas comigo.
Ele me puxou suavemente para um abraço. Ficamos assim, em silêncio, ouvindo a cidade dormir ao nosso redor. E naquele instante, eu soube: era ali que meu coração queria ficar.
Mas a paz, como sempre, não duraria tanto.
No sábado seguinte, durante um almoço em família, Miguel trouxe o assunto à mesa — sem cerimônias.
— E se o Jonas te deixar como todos os outros?
O garfo caiu do meu prato.
Teresa olhou para ele, firme. — Miguel, não é o momento.
Mas eu já estava me levantando.
— Na verdade, é sim. É o momento. Porque eu cansei de ser a irmã que engole tudo calada. Se vocês ainda acham que não mereço ser feliz, digam logo.
Clara tentou intervir. — Não é isso...
— Então o que é? — perguntei, a voz embargada. — É medo de me ver bem? Medo de perceberem que talvez nunca tenham tentado me conhecer de verdade?
Miguel levantou-se também. — Eu só não quero que te magoes de novo, Isabel!
— Pois então não sejas tu o primeiro a me ferir — rebati.
A sala ficou em silêncio. Teresa olhava para nós com olhos marejados. Mas havia também orgulho. Porque, finalmente, eu estava me defendendo. Com dignidade. Com verdade.
Naquela noite, recebi uma mensagem de Miguel.
“Desculpa. Ainda estou aprendendo a lidar com a tua felicidade. Mas eu quero te ver feliz. Mesmo que eu precise reaprender como.”
Respondi:
“Então caminha comigo. Não atrás. Não na frente. Ao lado.”
E, pela primeira vez, achei que talvez, só talvez, meu lugar na família não precisasse mais ser explicado. Só aceito.