Capítulo 14 As pequenas liberdades

A primeira vez que deixei Jonas entrar em casa — não como visita, mas como parte de mim — foi numa tarde de quinta-feira, sem qualquer ocasião especial. Ele trouxe um bolo simples, desses de laranja com calda de açúcar, e uma garrafa de vinho barato. Sorriu como quem sabia que estava a entrar num território sagrado e frágil.

Teresa foi quem abriu a porta.

— Tu deves ser o famoso Jonas — disse ela, num tom neutro, mas sem hostilidade.

Ele apenas assentiu, oferecendo o bolo como se fosse um tratado de paz.

— Para adoçar a tarde — respondeu.

Eu observava os dois, numa mistura de receio e esperança. Mas Teresa deu espaço. Mandou-me um olhar silencioso, o mesmo que me dava quando eu era pequena e pedia permissão com os olhos. E depois retirou-se, deixando-nos na sala.

Sentámo-nos no sofá como dois adolescentes inseguros. Era estranho vê-lo ali, entre as almofadas desbotadas da infância, debaixo do quadro antigo de família que sempre me lembrava o quanto eu destoava. Mas, naquela tarde, nada destoava. Jonas parecia pertencer — talvez não à casa, mas ao que eu estava a construir dentro dela.

— Estás nervosa — ele disse, tocando de leve minha mão.

— Um pouco. Esta casa tem ecos — respondi.

Ele sorriu. — Que tal mudarmos os sons?

Falámos por horas. Sobre filmes antigos. Sobre infância. Sobre feridas e escolhas. A certa altura, Miguel chegou. A tensão entrou com ele, sem pedir licença.

— Boa tarde — disse, curto, olhando de relance para Jonas.

— Boa tarde — respondeu Jonas, com respeito.

— Estás a jantar cá? — Miguel perguntou, já sabendo a resposta.

— Não — respondi antes que Jonas dissesse qualquer coisa. — Só viemos conversar. E comer bolo.

Houve um silêncio breve. Depois Miguel assentiu, cruzou a sala e foi para o quarto.

Não houve gritos. Nem sarcasmos. Só a dificuldade visível de aceitar que minha vida seguia caminhos diferentes agora. E ainda assim, ele tentou não impedir.

Quando Jonas foi embora, deixou um bilhete ao lado do prato vazio:

“As casas também aprendem a nos amar, se insistirmos com doçura.”

Sorri. Pela primeira vez, pensei que talvez minha história com ele pudesse mesmo crescer — não como um refúgio, mas como um lar.

Nos dias seguintes, Clara tornou-se minha aliada silenciosa. Começámos a tomar chá juntas à noite, como se tivéssemos redescoberto uma infância que nunca foi partilhada. Ela falava sobre o trabalho, sobre os pequenos atritos com Teresa, e eu escutava sem julgar. Era bonito ver como os gestos mais simples curavam feridas tão antigas.

— O Miguel ainda está a aprender a calar certas dores — disse ela uma noite. — Mas ele está a tentar. E acho que tu já o perdoaste antes mesmo de ele perceber.

— Talvez — respondi. — Ou talvez eu só tenha cansado de guardar mágoas como herança.

Clara sorriu. — Estás diferente mesmo. Mas de um jeito bom.

Abracei-a. — É que agora eu deixo entrar o que é bom. Sem culpa.

No domingo, a família se reuniu para o almoço. Era a primeira vez que todos estavam juntos desde aquele embate. Jonas não foi. Fiz questão de que aquele momento fosse só nosso.

Miguel me serviu arroz, em silêncio. Depois, estendeu o prato com naturalidade. Como se já fôssemos só irmãos, sem muros.

— Estive a ler um livro que me lembrou de ti — ele comentou.

— Qual?

As Coisas Que Guardamos no Silêncio — respondeu. — Tem uma personagem que me fez pensar... em como é fácil julgar quando não se sabe o que o outro carrega.

Olhei para ele, tocada.

— Obrigada por me veres, Miguel. Agora.

Ele apenas assentiu, os olhos marejados. E seguimos comendo. Como uma família que, aos tropeços, aprende a andar junto.

Naquela noite, liguei para Jonas.

— Queria que soubesses que hoje... hoje foi leve. Pela primeira vez.

— Então guarda esse dia — ele respondeu. — E vamos colecionar mais como esse.

Fechei os olhos, deitada na cama, ouvindo sua voz.

— Sabe o que mais gosto em ti, Jonas?

— Diz.

— Que nunca me fazes sentir pequena. Nem culpada por crescer.

— Porque tu nasceste para ser inteira, Isabel. E ninguém tem o direito de te manter em pedaços.

Suspirei. Ele era minha liberdade com nome e rosto. E eu estava pronta para voar com ele — sem medo de voltar à terra firme.

O mundo não mudou de repente. A dor não desapareceu. Mas havia uma paz nova em mim — a das pequenas liberdades que fui conquistando. A de me sentar à mesa sem me encolher. A de rir sem pedir desculpa. A de amar sem me esconder.

E, no fundo, era isso que eu queria o tempo todo.

Ser amada sem precisar explicar quem eu era.