A primeira vez que deixei Jonas entrar em casa — não como visita, mas como parte de mim — foi numa tarde de quinta-feira, sem qualquer ocasião especial. Ele trouxe um bolo simples, desses de laranja com calda de açúcar, e uma garrafa de vinho barato. Sorriu como quem sabia que estava a entrar num território sagrado e frágil.
Teresa foi quem abriu a porta.
— Tu deves ser o famoso Jonas — disse ela, num tom neutro, mas sem hostilidade.
Ele apenas assentiu, oferecendo o bolo como se fosse um tratado de paz.
— Para adoçar a tarde — respondeu.
Eu observava os dois, numa mistura de receio e esperança. Mas Teresa deu espaço. Mandou-me um olhar silencioso, o mesmo que me dava quando eu era pequena e pedia permissão com os olhos. E depois retirou-se, deixando-nos na sala.
Sentámo-nos no sofá como dois adolescentes inseguros. Era estranho vê-lo ali, entre as almofadas desbotadas da infância, debaixo do quadro antigo de família que sempre me lembrava o quanto eu destoava. Mas, naquela tarde, nada destoava. Jonas parecia pertencer — talvez não à casa, mas ao que eu estava a construir dentro dela.
— Estás nervosa — ele disse, tocando de leve minha mão.
— Um pouco. Esta casa tem ecos — respondi.
Ele sorriu. — Que tal mudarmos os sons?
Falámos por horas. Sobre filmes antigos. Sobre infância. Sobre feridas e escolhas. A certa altura, Miguel chegou. A tensão entrou com ele, sem pedir licença.
— Boa tarde — disse, curto, olhando de relance para Jonas.
— Boa tarde — respondeu Jonas, com respeito.
— Estás a jantar cá? — Miguel perguntou, já sabendo a resposta.
— Não — respondi antes que Jonas dissesse qualquer coisa. — Só viemos conversar. E comer bolo.
Houve um silêncio breve. Depois Miguel assentiu, cruzou a sala e foi para o quarto.
Não houve gritos. Nem sarcasmos. Só a dificuldade visível de aceitar que minha vida seguia caminhos diferentes agora. E ainda assim, ele tentou não impedir.
Quando Jonas foi embora, deixou um bilhete ao lado do prato vazio:
“As casas também aprendem a nos amar, se insistirmos com doçura.”
Sorri. Pela primeira vez, pensei que talvez minha história com ele pudesse mesmo crescer — não como um refúgio, mas como um lar.
Nos dias seguintes, Clara tornou-se minha aliada silenciosa. Começámos a tomar chá juntas à noite, como se tivéssemos redescoberto uma infância que nunca foi partilhada. Ela falava sobre o trabalho, sobre os pequenos atritos com Teresa, e eu escutava sem julgar. Era bonito ver como os gestos mais simples curavam feridas tão antigas.
— O Miguel ainda está a aprender a calar certas dores — disse ela uma noite. — Mas ele está a tentar. E acho que tu já o perdoaste antes mesmo de ele perceber.
— Talvez — respondi. — Ou talvez eu só tenha cansado de guardar mágoas como herança.
Clara sorriu. — Estás diferente mesmo. Mas de um jeito bom.
Abracei-a. — É que agora eu deixo entrar o que é bom. Sem culpa.
No domingo, a família se reuniu para o almoço. Era a primeira vez que todos estavam juntos desde aquele embate. Jonas não foi. Fiz questão de que aquele momento fosse só nosso.
Miguel me serviu arroz, em silêncio. Depois, estendeu o prato com naturalidade. Como se já fôssemos só irmãos, sem muros.
— Estive a ler um livro que me lembrou de ti — ele comentou.
— Qual?
— As Coisas Que Guardamos no Silêncio — respondeu. — Tem uma personagem que me fez pensar... em como é fácil julgar quando não se sabe o que o outro carrega.
Olhei para ele, tocada.
— Obrigada por me veres, Miguel. Agora.
Ele apenas assentiu, os olhos marejados. E seguimos comendo. Como uma família que, aos tropeços, aprende a andar junto.
Naquela noite, liguei para Jonas.
— Queria que soubesses que hoje... hoje foi leve. Pela primeira vez.
— Então guarda esse dia — ele respondeu. — E vamos colecionar mais como esse.
Fechei os olhos, deitada na cama, ouvindo sua voz.
— Sabe o que mais gosto em ti, Jonas?
— Diz.
— Que nunca me fazes sentir pequena. Nem culpada por crescer.
— Porque tu nasceste para ser inteira, Isabel. E ninguém tem o direito de te manter em pedaços.
Suspirei. Ele era minha liberdade com nome e rosto. E eu estava pronta para voar com ele — sem medo de voltar à terra firme.
O mundo não mudou de repente. A dor não desapareceu. Mas havia uma paz nova em mim — a das pequenas liberdades que fui conquistando. A de me sentar à mesa sem me encolher. A de rir sem pedir desculpa. A de amar sem me esconder.
E, no fundo, era isso que eu queria o tempo todo.
Ser amada sem precisar explicar quem eu era.