A vida não voltou ao normal. Mas encontrou outro ritmo.
O luto tem isso: ele não termina. Ele apenas se acomoda. Aprende a conviver com o café da manhã, com os dias de sol, com os aniversários.
Na nova casa, havia um canto reservado só para ela. Um retrato pequeno de Teresa, um vaso com flores frescas e o caderno que ela me deixou. Jonas chamava aquele espaço de “a sala da memória”. Para mim, era um altar sem religião — um lugar de encontro com tudo o que me formou.
Uma tarde, mexendo nas caixas ainda por abrir, encontrei algo que me desmontou: um casaco antigo de lã azul. O cheiro era o mesmo. Mistura de alfazema, pele e tempo.
Abracei o casaco como quem abraça a ausência. E chorei. Mas dessa vez, sem raiva. Sem resistência.
Chorei com aceitação.
— Está tudo bem, mamã. Está mesmo tudo bem — sussurrei.
Comecei a dar oficinas de escrita na biblioteca local. Ao princípio, vieram só três pessoas. Depois, dez. Logo, já não havia cadeiras suficientes. O que começou como uma forma de ocupar o vazio transformou-se num espaço de cura coletiva.
Um dia, uma mulher de cabelos brancos me disse:
— Escrever contigo me fez lembrar que ainda tenho coisas a dizer. Mesmo depois de perder tanta gente.
Abracei-a. Porque compreendia exatamente.
Miguel passou a visitar com mais frequência. Trouxe-me uma moldura com uma foto rara: mamã, ainda jovem, segurando nós três ao colo. Clara sorria. Eu olhava para os lados. Miguel mordia o dedo.
— A mãe adorava essa foto — disse ele.
— Porque ali ela ainda não sabia que o tempo nos levaria para tão longe... e depois de volta — respondi.
Ele assentiu, com os olhos úmidos.
— Tu estás a guardar tudo, não estás?
— Estou. Mas não sozinha.
Jonas me olhava diferente agora. Como quem vê uma mulher que não se esconde mais nem nas dores, nem nas conquistas. Às vezes, ele dizia:
— A tua coragem é silenciosa. Mas ecoa em tudo.
E isso bastava.
Não precisávamos de grandes declarações. Vivíamos a promessa todos os dias. Com afeto. Com respeito. Com escolha.
Num domingo de céu limpo, fui ao antigo quintal da casa da mamã. As flores que ela plantou ainda estavam lá, sobrevivendo aos esquecimentos. Levei sementes novas. Sentei-me na terra. Plantei.
E enquanto cobria o solo com as mãos, percebi algo:
Eu estava fazendo o que ela sempre fez.
Cuidar mesmo quando ninguém vê.
Plantar mesmo sem saber se verá florescer.
Naquela noite, escrevi:
"O amor mais verdadeiro é o que continua mesmo depois que o tempo leva tudo. Porque ele não precisa de olhos para permanecer. Basta um gesto. Um silêncio cheio de memória. E a coragem de recomeçar."
E assim segui.
Ainda com saudade.
Mas também com vida.
Porque as coisas que ficam... são as que a gente escolhe carregar.