O outono chegou silencioso, pintando as ruas com tons que me lembravam os vestidos antigos da mamã. A cidade parecia mais calma, ou talvez fosse eu que estava mais atenta.
Foi nesse tempo que ela apareceu.
O nome dela era Lara. Quinze anos, olhos grandes e tristes, uma voz que evitava se fazer ouvir. Veio à biblioteca pela primeira vez trazida pela avó, que esperava que "a escrita a fizesse sair da casca".
— Ela não fala muito — disse a senhora, pedindo desculpas com o olhar.
— Não precisa — respondi. — Aqui, a gente escuta mesmo o que é dito no silêncio.
Lara sentou-se sempre no fundo. Caderno no colo, cabeça baixa. Mas aos poucos, a caneta começou a se mover. E as palavras vieram. Hesitantes. Raspadas. Mas vieram.
Um dia, após uma das oficinas, ela esperou que todos saíssem.
— Professora... posso mostrar um texto?
— Claro, Lara.
Ela me entregou três folhas dobradas. Li ali mesmo, sentada ao lado dela, em silêncio.
E chorei.
Era a história de uma menina que cresceu sem sentir que tinha lugar no mundo. Até que conheceu uma mulher que não queria ser mãe — mas acabou sendo.
Olhei para Lara.
— Essa menina és tu?
Ela assentiu, tímida.
— E a mulher?
— Não sei — respondeu. — Talvez seja você. Ou talvez eu deseje que seja.
Fiquei sem palavras. Porque ali, naquela troca simples, percebi que algo dentro de mim se reabrira.
Não era apenas ensinar. Era cuidar de novo.
De outro jeito.
Contei a Jonas naquela noite.
— Sinto como se... como se a vida tivesse me dado outra chance de amar alguém desde o começo.
Ele sorriu.
— Talvez tu sejas a mulher que Lara precisava encontrar. E ela... a menina que te ajuda a manter Teresa viva.
Assenti, com o coração cheio.
— Não é ser mãe. Mas é... acolher.
— E isso já é um tipo de maternidade — ele completou.
Lara passou a vir mais vezes. Trazia textos, perguntas, medos.
Às vezes, só vinha para ficar em silêncio ao meu lado.
Clara notou.
— Estás diferente, sabias?
— Como assim?
— Mais suave. Como quando a mamã lia para nós à noite.
Sorri.
— Talvez porque estou a ler para alguém agora. Mesmo sem palavras.
Num sábado de manhã, Lara me deu um envelope. Dentro, havia um pequeno cartão.
“Obrigada por me deixar existir sem ter que pedir desculpa.”
Li três vezes.
E guardei.
Porque ali estava tudo.
A razão de ainda continuar a plantar, a escrever, a amar.
Não era sobre grandes feitos.
Era sobre estar presente.
Como Teresa foi para mim.
Como eu era agora para Lara.
A casa que Jonas e eu dividíamos começou a ganhar outros sons. Risos novos. Silêncios partilhados. Histórias multiplicadas.
E eu entendi, com toda a certeza, que mesmo sem filhos biológicos, mesmo com as perdas e os recomeços...
Eu me tornara, enfim, a mulher que queria ter ao meu lado quando era menina.
A mulher que Teresa formou com amor.
E que agora continuava — não no sangue.
Mas no gesto.
No olhar.
No acolher.