A vida tem uma forma curiosa de testar a nossa paz: espera que a gente respire fundo... e então sopra o passado de volta.
Fazia uma semana desde que Jonas e eu voltáramos a conversar. Cautelosos. Cuidadosos. Tentando, com dignidade, reconstruir o que sobrou sem ignorar o que doeu.
Ele estava decidido a escrever para Sofia. Eu o ajudava com as palavras, cortando exageros, limpando o tom. Não como cúmplice. Mas como ponte.
— Ela vai te responder quando estiver pronta — eu disse.
— E se não responder?
— Aí tu vais aprender a esperar. Como eu esperei por ti.
Ele apenas assentiu.
Naquela mesma tarde, recebi uma mensagem anônima. Número desconhecido.
“Acha que pode viver em paz sem olhar para trás? Nem todos te esqueceram, Isabel.”
A primeira reação foi desprezar. Mas o coração não deixou.
Voltei a ler. Aquela frase tinha cheiro de infância quebrada, de vergonha antiga. E, de repente, o nome veio com nitidez:
Diogo.
O primo afastado. Aquele que riu do meu corpo em voz alta aos 13. Que me fez sentir suja sem nunca ter me tocado. Mas que marcou com palavras o que levei anos para limpar de mim.
Eu nunca contei aquilo à mamã. Nem a Clara. Nem a ninguém.
Mas agora ele voltava.
E eu não sabia se o que sentia era medo... ou fome de confronto.
Contei a Jonas naquela noite. Ele ficou em silêncio. Depois disse:
— O que ele te fez?
— Não importa mais. O que importa é que ele me ensinou que dor também pode ser herdada em silêncio.
— E o que vais fazer agora?
— Vou vê-lo. Não para perdoar. Mas para me ouvir dizer tudo que nunca pude.
Diogo aceitou o encontro. Marcamos num café perto da universidade onde ele agora dava aulas. Professor de história. Que ironia.
Quando me viu, tentou sorrir com aquele velho ar de superioridade.
— Isabel... depois de tantos anos...
— Não digas meu nome com essa boca — interrompi.
Ele congelou.
— Eu só queria...
— Tu só quiseste rir do meu corpo. E isso foi o suficiente para me fazer duvidar de mim durante anos.
— Éramos adolescentes. Não sabíamos o que dizíamos...
— Tu sabias. Sabias, e te divertiste. E nunca me pediste desculpa.
Ele abaixou os olhos.
— Então... desculpa.
— Não. Não aceito. Porque desculpa é o que se dá quando há arrependimento. E tu só estás aqui porque agora tens medo do que eu possa fazer com a tua reputação.
Diogo levantou-se, tenso.
— Vais me ameaçar?
— Não. Não preciso. Já não és meu monstro. És só um homem pequeno demais para me alcançar.
Saí antes que ele respondesse.
Não tremia. Não chorava.
Era como se, finalmente, aquela Isabel de 13 anos pudesse andar ao meu lado — erguida. Inteira. Vista.
Escrevi no caderno da mamã:
"A vingança não é sempre grito ou destruição. Às vezes, é apenas continuar viva... diante de quem tentou te apagar."
Jonas me esperava em casa. Quando me viu entrar, entendeu tudo sem que eu dissesse nada.
— E então?
— Vê-lo... não mudou o que me fizeram. Mas mudou quem eu sou diante disso.
Ele sorriu.
— E quem tu és agora?
— Alguém que sabe o próprio tamanho.
Ele me puxou para perto, sem pressa. E me beijou como quem pede permissão, mas já sabe a resposta.
Porque agora, mais do que nunca, era eu quem escolhia.
E ninguém mais me colocaria em silêncio.