A tarde estava cinzenta. O tipo de céu que parecia sussurrar que algo estava para mudar. Eu estava no centro cultural, revisando relatórios de doações, quando ouvi passos apressados no corredor. Antes que pudesse levantar, a porta se abriu.
— Isabel! — disse Clara, minha irmã. O tom de voz não era de visita casual.
Fazia semanas que ela não aparecia. Clara sempre foi assim: intensa, amorosa e imprevisível.
— Clara? Que surpresa. Aconteceu alguma coisa?
Ela entrou sem responder, trancou a porta e jogou a bolsa sobre a mesa. Os olhos estavam vermelhos.
— Aconteceu, sim. E eu estou farta de fingir que está tudo bem.
Sentei, com o estômago revirado. Algo naquela postura dizia que o que vinha não seria leve.
— Farta de quê?
— De ti, de Jonas, dessa tua mania de te agarrar a um homem que não conheces completamente! — disse, a voz oscilando entre raiva e dor.
— Do que estás a falar, Clara?
Ela me encarou. Havia lágrimas nos olhos, mas também mágoa antiga.
— Lembras quando eu precisei de ti? Quando o meu casamento estava ruindo, e tu escolheste ir para um retiro com o Jonas em vez de me acompanhar?
— Eu não sabia que estavas tão mal…
— Tu sabias, Isabel. Mas preferiste te esconder atrás do teu novo amor. Achas que ele é o teu salvador, mas... ele te afasta de nós!
Aquilo doeu. Não era apenas ciúmes. Era abandono.
— Clara, eu nunca quis te deixar sozinha. Mas tu também nunca pediste ajuda. Sempre foste orgulhosa.
— E tu sempre foste egoísta!
O grito ecoou. Por um instante, pensei que alguma parede fosse desmoronar. Mas o que caiu foi o que ainda restava da nossa falsa harmonia.
— Então é isso? Vieste aqui para me culpar por tudo?
— Não. Vim porque… há outra coisa. Algo que me disseram. Sobre o Jonas.
O coração bateu mais forte.
— O quê?
— Ele já esteve envolvido num escândalo com outra mulher. Uma jovem que frequentava a ONG Raízes. Não sei se era funcionária, voluntária… só sei que ela desapareceu depois de um conflito com ele. E desde então, nunca mais foi vista por lá.
— E de onde vem isso?
— Uma ex-coordenadora da ONG. Ela veio até mim, achando que eu era a Isabel “famosa”. Quando descobriu que era só a irmã… desabou tudo.
Fiquei em silêncio.
— Se queres continuar com ele, tudo bem. Mas precisas saber com quem estás lidando.
— Clara, eu… não sei o que pensar.
— Então pensa. Antes que seja tarde.
Jonas chegou no fim do dia. Olhava para mim com ternura. Mas algo dentro de mim já não era mais leve.
— Tiveste um dia difícil? — perguntou, sentando-se ao meu lado.
— A Clara veio.
Ele congelou.
— Ela falou de mim?
— Falou. E eu preciso saber: o que aconteceu na ONG Raízes? Houve uma mulher? Uma jovem?
Ele respirou fundo, o rosto pálido.
— Isabel… houve uma situação complicada. Ela se chamava Letícia. Era estagiária. Ela se apaixonou por mim… e eu… não soube lidar. Nunca houve nada físico. Mas eu deixei que ela se aproximasse emocionalmente demais. Quando a direcção soube, fui afastado.
— E depois?
— Letícia saiu da ONG. Nunca mais falei com ela. Não sei o que aconteceu.
Fiquei olhando para o chão.
— Não posso continuar ouvindo essas histórias de outras pessoas, Jonas. Preciso da verdade. Toda.
Ele segurou minha mão.
— Estás pronta para ouvir tudo?
— Sim. Mesmo que doa.
Enquanto processava tudo isso, a situação no centro cultural se complicava. Bianca, a nova voluntária, tornou-se mais ousada. Percebi que algumas doações estavam sendo desviadas. Documentos adulterados. Faltava dinheiro no caixa.
Confrontei-a discretamente.
— Bianca, podes me explicar por que assinaste essa entrada de materiais que nunca chegou?
Ela sorriu, sem pudor.
— Acontece, Isabel. O sistema é antigo. Pode ter havido erro.
— Já é o terceiro erro em uma semana.
Ela se aproximou.
— Cuidado com o que procuras. Às vezes, é melhor deixar certas portas fechadas.
Fiquei em choque. Nunca uma funcionária tinha me ameaçado assim. Levei o caso ao conselho do centro. E foi Lara quem teve coragem de apoiar.
— Eu vi ela manipulando os registros — disse Lara, firme. — Está roubando.
Bianca foi suspensa. E no dia seguinte, recebemos um bilhete anônimo:
"Se me tirarem daqui, vou derrubar tudo. Começando pela tua família, Isabel."
Naquela noite, me sentei ao lado de Jonas na varanda.
— Estamos em meio a uma tempestade — disse ele.
— Eu sei. Mas não quero fugir. Não de ti. Nem da verdade. Nem da Clara. Nem de mim mesma.
Ele me olhou. Havia algo novo em seu olhar. Respeito. Admiração.
— Tu me salvaste. Mas agora vejo que também precisas ser salva.
— Todos precisamos — sussurrei. — De vez em quando.
E ali, em meio a tantas rachaduras, nasceu algo forte.
Não a perfeição.
Mas o amor… em estado bruto. E verdadeiro.