Capítulo 37 :O que está por trás do silêncio

A tarde estava cinzenta. O tipo de céu que parecia sussurrar que algo estava para mudar. Eu estava no centro cultural, revisando relatórios de doações, quando ouvi passos apressados no corredor. Antes que pudesse levantar, a porta se abriu.

— Isabel! — disse Clara, minha irmã. O tom de voz não era de visita casual.

Fazia semanas que ela não aparecia. Clara sempre foi assim: intensa, amorosa e imprevisível.

— Clara? Que surpresa. Aconteceu alguma coisa?

Ela entrou sem responder, trancou a porta e jogou a bolsa sobre a mesa. Os olhos estavam vermelhos.

— Aconteceu, sim. E eu estou farta de fingir que está tudo bem.

Sentei, com o estômago revirado. Algo naquela postura dizia que o que vinha não seria leve.

— Farta de quê?

— De ti, de Jonas, dessa tua mania de te agarrar a um homem que não conheces completamente! — disse, a voz oscilando entre raiva e dor.

— Do que estás a falar, Clara?

Ela me encarou. Havia lágrimas nos olhos, mas também mágoa antiga.

— Lembras quando eu precisei de ti? Quando o meu casamento estava ruindo, e tu escolheste ir para um retiro com o Jonas em vez de me acompanhar?

— Eu não sabia que estavas tão mal…

— Tu sabias, Isabel. Mas preferiste te esconder atrás do teu novo amor. Achas que ele é o teu salvador, mas... ele te afasta de nós!

Aquilo doeu. Não era apenas ciúmes. Era abandono.

— Clara, eu nunca quis te deixar sozinha. Mas tu também nunca pediste ajuda. Sempre foste orgulhosa.

— E tu sempre foste egoísta!

O grito ecoou. Por um instante, pensei que alguma parede fosse desmoronar. Mas o que caiu foi o que ainda restava da nossa falsa harmonia.

— Então é isso? Vieste aqui para me culpar por tudo?

— Não. Vim porque… há outra coisa. Algo que me disseram. Sobre o Jonas.

O coração bateu mais forte.

— O quê?

— Ele já esteve envolvido num escândalo com outra mulher. Uma jovem que frequentava a ONG Raízes. Não sei se era funcionária, voluntária… só sei que ela desapareceu depois de um conflito com ele. E desde então, nunca mais foi vista por lá.

— E de onde vem isso?

— Uma ex-coordenadora da ONG. Ela veio até mim, achando que eu era a Isabel “famosa”. Quando descobriu que era só a irmã… desabou tudo.

Fiquei em silêncio.

— Se queres continuar com ele, tudo bem. Mas precisas saber com quem estás lidando.

— Clara, eu… não sei o que pensar.

— Então pensa. Antes que seja tarde.

Jonas chegou no fim do dia. Olhava para mim com ternura. Mas algo dentro de mim já não era mais leve.

— Tiveste um dia difícil? — perguntou, sentando-se ao meu lado.

— A Clara veio.

Ele congelou.

— Ela falou de mim?

— Falou. E eu preciso saber: o que aconteceu na ONG Raízes? Houve uma mulher? Uma jovem?

Ele respirou fundo, o rosto pálido.

— Isabel… houve uma situação complicada. Ela se chamava Letícia. Era estagiária. Ela se apaixonou por mim… e eu… não soube lidar. Nunca houve nada físico. Mas eu deixei que ela se aproximasse emocionalmente demais. Quando a direcção soube, fui afastado.

— E depois?

— Letícia saiu da ONG. Nunca mais falei com ela. Não sei o que aconteceu.

Fiquei olhando para o chão.

— Não posso continuar ouvindo essas histórias de outras pessoas, Jonas. Preciso da verdade. Toda.

Ele segurou minha mão.

— Estás pronta para ouvir tudo?

— Sim. Mesmo que doa.

Enquanto processava tudo isso, a situação no centro cultural se complicava. Bianca, a nova voluntária, tornou-se mais ousada. Percebi que algumas doações estavam sendo desviadas. Documentos adulterados. Faltava dinheiro no caixa.

Confrontei-a discretamente.

— Bianca, podes me explicar por que assinaste essa entrada de materiais que nunca chegou?

Ela sorriu, sem pudor.

— Acontece, Isabel. O sistema é antigo. Pode ter havido erro.

— Já é o terceiro erro em uma semana.

Ela se aproximou.

— Cuidado com o que procuras. Às vezes, é melhor deixar certas portas fechadas.

Fiquei em choque. Nunca uma funcionária tinha me ameaçado assim. Levei o caso ao conselho do centro. E foi Lara quem teve coragem de apoiar.

— Eu vi ela manipulando os registros — disse Lara, firme. — Está roubando.

Bianca foi suspensa. E no dia seguinte, recebemos um bilhete anônimo:

"Se me tirarem daqui, vou derrubar tudo. Começando pela tua família, Isabel."

Naquela noite, me sentei ao lado de Jonas na varanda.

— Estamos em meio a uma tempestade — disse ele.

— Eu sei. Mas não quero fugir. Não de ti. Nem da verdade. Nem da Clara. Nem de mim mesma.

Ele me olhou. Havia algo novo em seu olhar. Respeito. Admiração.

— Tu me salvaste. Mas agora vejo que também precisas ser salva.

— Todos precisamos — sussurrei. — De vez em quando.

E ali, em meio a tantas rachaduras, nasceu algo forte.

Não a perfeição.

Mas o amor… em estado bruto. E verdadeiro.