Capítulo 70: Onde viemos não diz para onde iremos

Na noite da palestra de Lou, senti o mesmo frio no estômago que senti no parto de Lara.

Aquela mistura de medo e esperança.

Como se o mundo estivesse para mudar… e só restasse confiar.

A sala estava lotada.

Mulheres, estudantes, ativistas, jornalistas.

Mas o que prendia minha atenção era a presença de Safia, sentada na última fileira, com um olhar que misturava desprezo e inveja.

Ela usava o mesmo perfume que usava no abrigo.

O cheiro do passado.

Lou subiu ao palco com calma.

Vestia um conjunto simples, elegante.

Nada caro.

Mas seu rosto… era o de alguém que sobreviveu ao abandono e à humilhação, como Marimar diante do povo que a rejeitou.

Ela começou:

— Quando eu era criança, minha casa era feita de silêncios.

Silêncio sobre meu nome.

Sobre minha origem.

E sobre o que me foi tirado.

A plateia ouviu, quieta.

— Durante anos, deixei que outras pessoas decidissem quem eu era.

Disseram que eu era uma órfã.

Uma inválida.

Uma sombra.

— Mas então… fui encontrada.

Por uma mulher que não me deu luxo.

Me deu espelho.

Me deu o direito de ser alguém que não precisava pedir desculpas por existir.

Safia levantou-se, interrompendo.

— Lou, não contes só a parte bonita!

Conta que tu tinhas medo!

Que choravas escondida!

Que foste covarde!

A sala gelou.

Lou se virou com serenidade.

— Sim, Safia. Eu chorei.

Tive medo.

Fui covarde.

Mas hoje estou aqui, de pé.

E tu? Ainda estás onde me deixaste.

Safia riu com deboche.

— Estás fingindo ser o que nunca foste! Só foste uma filha inventada pra dar à Fundação um rosto trágico!

Lou se aproximou da beira do palco.

— Não sou filha inventada.

Sou filha escolhida.

Por Teresa.

E por mim mesma.

— Foste adotada pela fama!

— Fui acolhida pela verdade.

A sala aplaudiu.

Safia, então, saiu apressada.

E Lou… permaneceu.

Mais forte.

Mais digna.

Mais livre.

Após o evento, abracei Lou nos bastidores.

— Estás bem?

— Sim.

Foi como me ver sair da lama…

Mas sem precisar me sujar de novo.

— Foste Marimar — sorri. — Mas com final escrito por ti.

Ela riu.

— E agora… quero escrever mais. Quero dar voz a meninas como eu.

— Vamos construir esse caminho juntas.

Mas nem tudo era aplauso.

Na manhã seguinte, recebi um relatório de segurança da Vera:

— Há indícios de que alguém dentro da Fundação está vazando documentos internos.

— O quê?

— Relatórios, identidades protegidas, movimentações financeiras.

Alguém próximo.

— Tens suspeitos?

Ela hesitou.

— Um nome surgiu duas vezes: Gustave, o novo assessor de imprensa.

Tem contatos antigos com grupos contrários à atuação da Teresa no passado.

— Achas que é ele?

— Não tenho provas. Ainda.

Suspirei.

— Então conseguimos tudo isso… e temos um inimigo dentro.

— Assim como Teresa teve.

Fechei os olhos.

O inimigo mais perigoso é aquele que aprende o caminho da tua sala de estar.

Na varanda naquela noite, sentei com Jonas.

— Estou cansada.

— Cansada de quê?

— De olhar para cada rosto novo com desconfiança.

— Mas ainda assim tu continuas.

— Porque aprendi com Marimar.

— O quê?

— Que mesmo quando te jogam na lama… tu te levantas.

Mas voltas elegante.

Não pra humilhar.

Mas pra mostrar que ninguém tira o que é teu por verdade.

Ele sorriu.

— Então vamos em frente.

E eu disse:

— Sim. Mas agora… com os olhos abertos.

E o coração protegido.