Capítulo 71: O que nos move quando ninguém está a ver

Aquela manhã chegou com mais perguntas do que respostas.

Vera entrou na minha sala com uma pasta preta e o rosto carregado.

— O nome dele apareceu em outro acesso não autorizado.

— Gustave?

— Sim. E desta vez foi direto nos arquivos financeiros da Fundação. Tentou mascarar o IP, mas falhou.

Fechei os olhos.

— Então o traidor está dentro. E perto demais.

— O que vais fazer?

— Nada. Ainda.

Porque os que traem por dentro precisam acreditar que não foram vistos…

até ser tarde demais.

Lou apareceu em seguida, mais pálida que de costume.

— Mãe… a ONU enviou um convite oficial.

— O quê?

— Querem que eu fale em Genebra, na Assembleia para Proteção de Refugiadas.

— Isso é enorme, Lou!

— Eu sei.

Mas… e se eu não aguentar?

— Tu aguentaste Safia. Aguentarás qualquer sala.

Ela sorriu fraco.

— Mas a ONU não é o abrigo.

É o mundo inteiro olhando.

— Então olha de volta.

E mostra que ninguém mais vai te apagar.

Vivian passou o dia em silêncio.

Parecia inquieta, andando pela casa como quem procura uma versão antiga de si mesma.

No fim da tarde, sentou-se ao meu lado.

— Recebi uma visita hoje.

De Aurora.

Meu corpo congelou.

— A mulher que te criou?

— Sim. Ela está mais velha. Fraca.

Disse que veio pedir desculpas… e devolver algo.

— O quê?

Vivian tirou uma pequena caixa do bolso. Dentro, uma pulseira de miçangas desbotadas.

— Eu usava isso antes de ela me transformar.

Antes de me maquiar com medo.

Ela continuou:

— Perguntei a ela por que me manteve mentida por tanto tempo.

E ela respondeu: porque era mais fácil lidar contigo como projeto do que como pessoa.

Segurei a mão da minha filha.

— E tu?

— Eu a perdoei. Mas não para aliviá-la.

Perdoei pra me libertar.

Chorei em silêncio.

Porque ali estava Vivian.

Inteira.

Mesmo com rachaduras.

Mais tarde, Jonas e eu analisávamos os registros de Gustave.

Ele havia compartilhado documentos com uma conta externa chamada “Pilar74”.

Vera pesquisou.

— Pilar é um antigo codinome usado por ativistas infiltrados na antiga Aliança.

— Estás a dizer que a Fundação está sendo usada… como isca política?

— Sim.

E o alvo não és tu.

São as meninas.

Meu sangue gelou.

O que começou como legado…

agora era campo de guerra.

Naquela noite, escrevi em meu caderno:

“Filhas que sobrevivem são como sementes num campo minado.

Elas não escolhem onde cair…

Mas florescem mesmo assim.

Agora é minha vez de cavar a terra e tirar as bombas.

Porque não vou permitir que enterrem o que Teresa nos deixou.

E nem quem nos tornamos.”