Capítulo 74: A Herança que Queima nas mãos

A notificação chegou dobrada, fria, impessoal.

“Processo nº 2025/274-F:

Fundação Teresa Guarda está sob investigação por violação dos estatutos de neutralidade humanitária. Acusação: uso indevido de verba pública para fins ideológicos.”

Li três vezes antes de reagir.

Neutralidade.

A mesma palavra que sempre usaram para calar quem grita por justiça.

Vivian estava ao meu lado quando abri a carta.

Não disse nada.

Apenas me entregou um copo de água e segurou minha mão.

— Vão tentar matar Teresa de novo — sussurrei.

— E se tentarem… nós ressuscitamos.

Naquela mesma manhã, recebi uma visita inesperada.

Beatriz Contreras, nome que eu não ouvia desde os arquivos secretos de Teresa.

Uma mulher de voz rouca, cabelos brancos e passado de revolução.

— Vi tua mãe atravessar fronteiras com documentos costurados nas saias — disse ela.

— E agora vejo as filhas dela tentando costurar um futuro num país que ainda prefere silêncio.

Ela me entregou uma caixa de madeira.

— Estes papéis foram guardados por décadas.

Tua mãe os escondeu para proteger nomes… e vidas.

— E por que agora?

— Porque querem transformar a Teresa numa bandeira que pode ser queimada.

Mas ela era mais que isso.

Era memória viva.

E tu és a última guardiã.

Abri a caixa.

Cartas assinadas por líderes da resistência, fotografias, mapas de rotas usadas por mulheres em fuga.

E uma carta endereçada a mim.

“Isabel,

Se leres isso, é porque tentam me apagar.

Usa essas provas como quiseres.

Mas lembra:

às vezes, proteger o nome de uma mãe… custa o nome de uma filha.”

Fiquei sem ar.

Porque entendi o que Teresa estava me dizendo.

Talvez, para proteger Lou, Vivian e Lara…

eu teria que destruir a Fundação que carrega o nome da minha mãe.

Convoquei Vera e Jonas.

— Temos provas suficientes para defender Teresa.

Mas se levarmos isso a público… podem nos acusar de exposição política proposital.

— E se escondermos? — perguntou Vera.

— O processo vai avançar.

E vai recair sobre as meninas.

Vão dizer que usaram o sofrimento como fachada.

Jonas me olhou.

— Vais ter que escolher:

Salvar o nome Teresa…

Ou salvar a vida que vocês construíram em torno dele.

À noite, Lou me perguntou:

— Mãe… se tiveres que acabar com a Fundação, vais fazer?

Olhei para ela.

— Farei qualquer coisa para que tu continues viva.

Não famosa.

Não símbolo.

Viva.

— Mas e a Teresa?

— Teresa vive em ti.

Não precisa de uma placa.

Precisa de memória.

Lou chorou.

E eu também.

Porque sacrificar um nome…

é como enterrar uma alma pela segunda vez.

Vivian, ao saber, apenas disse:

— Se fores queimada por isso, eu vou queimar contigo.

— Não, filha.

— Então deixa que eu fale.

— Não.

Desta vez, é a minha voz que deve gritar.

Lara, por chamada, ouviu tudo em silêncio.

— Sabes, mãe…

A tua história sempre foi sobre resistir.

Mas talvez agora seja hora de ceder.

Não por fraqueza.

Mas por sabedoria.

— Achas que devo encerrar a Fundação?

— Acho que tu deves proteger quem ainda vive.

Porque Teresa… já nos deu tudo.

No dia seguinte, convoquei uma coletiva de imprensa.

Subi ao pódio com as mãos tremendo.

— Durante anos, a Fundação Teresa lutou por mulheres invisíveis.

Agora, tentam nos tornar culpadas por existir.

— Não vamos negar que tivemos voz.

Mas nunca foi por vaidade.

Foi por sobrevivência.

Respirei fundo.

— Anuncio hoje que a Fundação Teresa, como instituição, encerrará suas atividades formais.

Mas o legado dela… continuará em cada uma de nós.

Choque.

Silêncio.

— As sementes de Teresa não precisam de sede física.

Elas germinaram em corpos.

Em filhas.

Em palavras.

Voltei para casa e sentei no escuro.

Júlia apareceu com um envelope.

— Chegou pra ti. Anônimo.

Abri.

Dentro, uma única frase:

“Mataram a bandeira.

Mas não impediram o vento.”

Sorri com dor.

Porque sabíamos que o nome caiu.

Mas o grito?

O grito continua.