Capítulo 75 : O legado que não precisa de nome

Fechar a Fundação foi como enterrar minha mãe pela segunda vez.

As paredes que antes abrigavam nossas reuniões agora ecoavam vazio.

As vozes, antes firmes, se tornaram lembranças.

E eu… fiquei sentada no escritório, encarando o letreiro que começava a ser retirado da fachada.

“Fundação Teresa Guarda”

letras douradas, agora sendo levadas por mãos que nada sabiam do peso que carregavam.

Jonas entrou em silêncio.

— O fim não é tão silencioso quanto eu pensava — disse eu, com um meio sorriso.

— É um fim… ou só um ponto e vírgula?

Suspirei.

— Não sei. Só sei que estou cansada de proteger legados.

Queria só… viver. Sem lutar contra fantasmas todos os dias.

Ele se sentou ao meu lado.

— Talvez agora seja a hora disso.

De te reencontrares… como Isabel.

Sem Teresa.

Sem Fundação.

Sem fardos.

Mas como fazer isso quando meu nome inteiro sempre foi luta?

Naquela noite, Vivian e Lou chegaram juntas.

Vivian com a expressão inquieta, Lou com olhos brilhando demais pra fingir neutralidade.

— Recebemos um convite — disse Lou, quase sussurrando.

— Quem?

Vivian completou:

— A ONG Vozes Silenciadas.

É uma aliança global de mulheres sobreviventes de guerra, deslocamentos, violência.

— O que querem?

— Que nós duas lideremos um novo projeto internacional.

Nada de sede fixa.

Sem vínculo político.

Só ações.

Memória viva.

Fiquei em silêncio.

Vivian então falou:

— Não querem nossas versões editadas.

Querem nossas cicatrizes.

Nossas vozes.

Nossa verdade.

— E aceitam?

— Se tu nos abençoares, sim — disse Lou.

— E se eu disser não?

— Vamos do mesmo jeito — respondeu Vivian, com doçura e firmeza.

Sorri.

Era tudo que eu podia desejar:

Filhas que já não pedem permissão para existir.

Na manhã seguinte, entrei pela última vez no salão da Fundação.

Toquei cada moldura, cada cadeira, cada lembrança.

No centro da sala, deixei uma única coisa:

o diário de Teresa, aberto na última página, onde estava escrito:

“Se esta casa cair…

Que minhas filhas se levantem no lugar dela.”

Enviei um e-mail para a equipe da Vozes Silenciadas.

“Entrego-vos minhas filhas, não como símbolos,

mas como sobreviventes que escolheram continuar.

Honrai-as não com silêncio, mas com ação.”

Lara ligou no fim da tarde.

— Li sobre o convite.

Parabéns às minhas irmãs.

— E tu? Como estás?

— Publicaram um artigo dizendo que meu livro “é literatura incômoda demais para os delicados”.

— Isso é um elogio.

— Também achei.

Vou continuar.

Sorri.

Ela, mesmo longe, era ainda a que mais me lembrava Teresa:

feita de palavras afiadas e alma protegida.

Mais tarde, sentei-me com Jonas na varanda.

— Elas estão partindo — sussurrei.

— Não. Estão expandindo.

— Sem mim.

— Com tudo que tu deste.

— E o que me resta?

Ele segurou minha mão.

— Ser mulher. Não só mãe.

Ser Isabel. Não só filha de Teresa.

Respirei fundo.

E pela primeira vez… senti o peso sair dos ombros.

No dia seguinte, levei as três — Lou, Vivian e Júlia — até o antigo edifício da Fundação.

Antes de entrarmos no carro, pedi um minuto.

Voltei até a porta.

Olhei para a fachada sem nome.

E disse, bem baixo:

— Cumpri, mãe.

Mas agora…

é com elas.

Na estrada de volta, Lou cochilou no banco de trás.

Vivian ouvia música com os olhos fechados.

E eu, dirigindo, olhava pelo retrovisor.

Três mulheres que um dia foram crianças perdidas.

Agora iam pelo mundo como herdeiras de si mesmas.

Talvez Teresa nunca tenha sonhado com isso.

Mas eu sonhava.

E, enfim… estava vendo acontecer.

Ao final do dia, escrevi no meu novo caderno — o primeiro sem logotipo da Fundação:

“Elas são minhas filhas.

E hoje… eu sou delas.

A Fundação acabou.

Mas o que criamos respira.

O nome caiu.

Mas o legado anda.

Porque somos filhas que não foram escolhidas pelo mundo.

Mas que se escolheram… umas às outras.”