Recebi a mensagem às 10h da manhã.
“Clara está em Genebra.
Pediu para ver a Fundação.
E quer encontrar Júlia.
Só vocês duas. — Vera”
Meu estômago revirou.
Não pelo encontro em si, mas porque há anos venho empurrando para o fundo da memória o que Clara significa para mim — e para Júlia.
Clara chegou pontualmente às 16h.
Elegante. Sóbria.
Com aquele ar de quem não pede licença nem perdão.
Júlia já estava à minha espera, sentada em silêncio na sala de reuniões da antiga Fundação.
— Trouxeste mesmo ela aqui? — murmurou.
— Ela pediu. E eu achei… que talvez fosse hora.
— Hora de quê?
De fingir que ela sempre foi parte?
Antes que eu pudesse responder, Clara entrou.
Os olhos das duas se cruzaram.
Silêncio.
Denso.
Cortante.
— Olá, Júlia — disse Clara.
— Pensava que ias continuar sendo apenas uma nota de rodapé da nossa história — respondeu Júlia.
Clara riu, mas sem humor.
— Fui mais do que isso. Só que ninguém me escreveu.
Sentei entre elas. Mas nem eu conseguiria ocupar o espaço do que nunca foi resolvido.
— Por que agora? — perguntou Júlia.
— Porque quero entender por que fui excluída.
Por que Teresa me escondeu.
E por que vocês duas viraram filhas públicas…
e eu fui a vergonha invisível.
Júlia rebateu:
— Teresa não nos deu escolha.
Ela amava a Isabel com orgulho.
A mim com indiferença.
E a ti com silêncio.
Clara abaixou os olhos.
— E ainda assim… eu queria tê-la conhecido de verdade.
— Conhecer Teresa? — Júlia sorriu amargo.
— Ela não foi mãe. Foi missão.
E tu, Clara… foste a falha que ela nunca quis confessar.
— E o que eu sou pra ti, Júlia?
— Uma lembrança do que eu nunca fui: livre.
Tu tiveste outra vida.
Outra mãe.
Outra história.
— E mesmo assim, me invejas?
— Não te invejo.
Te culpo.
Clara ficou em silêncio.
E eu… senti o peso das duas.
— Basta — disse, por fim.
— Teresa errou com todas.
Comigo. Contigo. Com Júlia.
Ela nos fragmentou com o peso da missão dela.
Mas o que fazemos com isso… agora é escolha nossa.
Clara me olhou.
— Escolhi vir.
Escolhi perguntar.
Mas não sei se consigo perdoar.
— Nem eu — disse Júlia. — Mas talvez possamos nos ouvir.
Mesmo que doa.
As duas se calaram.
Não se abraçaram.
Não se perdoaram.
Mas naquele momento, pela primeira vez, se reconheceram.
Clara levantou-se.
— Obrigada por me deixares ver o lugar que não foi meu.
— E talvez ainda possa ser — disse eu.
Ela hesitou.
Depois saiu.
Júlia ficou parada.
Depois olhou para mim.
— E tu?
— Eu?
— Foste a favorita.
Foste a herdeira.
Tu achas que foste justa?
— Nunca.
Mas tentei.
E hoje… só quero ser inteira.
Júlia sorriu. Triste.
— Também eu.
Naquela noite, escrevi:
“Clara. Júlia. Isabel.
Três versões da filha que Teresa tentou formar.
Mas a verdade é que nenhuma de nós coube na caixa que ela construiu.
E agora…
talvez possamos nos montar com os pedaços soltos.”