O silêncio depois do reencontro com Clara durou dois dias.
Júlia evitava o assunto.
Eu tentava respirar entre as lembranças.
Mas algo em mim dizia que aquilo ainda não tinha acabado.
E não demorou a provar-se verdade.
Na manhã de sábado, Clara reapareceu.
Vestia o mesmo casaco cinzento da última visita, mas os olhos tinham outro brilho — o de quem veio com uma decisão tomada.
— Posso entrar?
— Claro.
Nos sentamos no antigo escritório da Fundação, agora esvaziado, com caixas empilhadas e cheiro de final.
Clara foi direta:
— Quero criar um novo projeto.
Uma iniciativa social.
Pequena. Sem grandes ambições.
Mas quero que leve o nome da minha mãe: Eulália.
Fiquei em silêncio.
— Teresa teve nome, legado, história escrita.
Mas a minha mãe foi a mulher esquecida no canto da fotografia.
E eu… cansei de ser filha do apagamento.
— Clara… isso é sobre revanche?
Ela me olhou firme.
— Não. É sobre existência.
Convoquei Júlia.
Ela ouviu em silêncio.
Depois disse:
— E queres nosso apoio?
— Quero que não me vejam como ameaça.
— Então por que construir algo fora do que já existe?
— Porque eu nunca fiz parte do que existe.
— Mas podias fazer agora.
Clara suspirou.
— Não quero viver à sombra de Teresa.
Quero criar algo com outra raiz.
Com outra linguagem.
Com outra dor.
Ficamos em silêncio.
Até que Júlia murmurou:
— Dói… porque me soa como abandono.
— Não é — respondeu Clara. — É só a primeira vez que sou vista em pé.
Não como uma nota de rodapé.
Fiquei entre as duas.
Como tantas vezes estive entre Lara, Vivian e Lou.
Mas agora… era com minhas irmãs.
— Eulália não foi parte do legado político de Teresa — disse eu. — Mas foi tua mãe.
E se ela te moldou… então seu nome também merece ser lembrado.
Clara assentiu.
— Não peço herança.
Peço espaço.
Naquela noite, escrevi:
“Não é só Teresa que deixou filhas.
Eulália também deixou uma.
E agora ela pede o que todas nós pedimos um dia:
O direito de existir com nome próprio.”
Dois dias depois, ajudei Clara a escrever a missão do novo projeto:
Iniciativa Eulália
Por todas as mulheres invisíveis.
Pelas mães que criaram sem aplauso.
Pelas filhas que sobreviveram fora da história oficial.
Enviei para Lou, Vivian e Lara.
Lou respondeu:
— Apoio. Porque sei como é crescer sem nome.
Vivian:
— Bonito. E justo. Desde que não apaguem Teresa pra acender outra.
Lara:
— Talvez agora seja a hora de escrevermos juntas. Três mães. Três filhas. Três histórias.*
Clara voltou à minha casa no fim da semana.
— Achas que Teresa me odiaria?
— Não.
Mas talvez não te entendesse.
Ela amava com a lógica da guerra: ou estás comigo… ou contra mim.
E tu estás… por ti.
Ela sorriu.
— E isso basta?
— Hoje… sim.
No último parágrafo do meu caderno, escrevi:
“Não somos uma árvore com um tronco só.
Somos galhos.
Ramos partidos que florescem em direções opostas.
E isso… também é família.”