Eu passei semanas evitando o caderno. Evitando o Caio. Evitando tudo que pudesse me puxar de volta praquilo que eu jurava ter enterrado.
Mas a verdade é que a ausência dele não preenchia o vazio. Pelo contrário, só ampliava. Era estranho andar pelos corredores e não cruzar o olhar dele. Era estranho sentar sozinha na biblioteca e não ter a expectativa de encontrar uma folha nova dobrada na mesa. Eu tentei convencer a mim mesma de que isso era o certo, que era mais seguro assim. Mas cada página que eu não escrevia pesava como um silêncio engasgado.
Então veio o anúncio do concurso.
“O Valor das Palavras” — era esse o tema da redação anual da escola. Irônico, eu pensei. Eu, logo eu, que sempre usei as palavras como escudo e abrigo, agora tinha que escrever sobre o valor delas quando elas pareciam ter me falhado.
Eu não pretendia participar. Nem queria. Mas aí encontrei o bilhete que Caio deixou na biblioteca. E tudo virou de cabeça pra baixo de novo.
As palavras dele foram diferentes daquela vez. Não tinham a mesma leveza de antes, nem o mesmo mistério. Eram cruas, vulneráveis. Ele não fingia mais. Ele expôs as próprias falhas, as dores e, acima de tudo, a vontade sincera de acertar. Ele não pediu desculpas esperando recompensa. Ele só quis ser verdadeiro.
Aquilo mexeu comigo mais do que eu queria admitir.
Foi por isso que eu deixei o bilhete no armário dele. Simples. Direto. Sem cobrança. Eu só queria que ele soubesse que eu tinha lido e que, se ele quisesse conversar, eu estaria ali.
Ele quis.
Marcamos de nos encontrar na biblioteca numa tarde de quinta. Quando cheguei, ele já estava lá. Sentado na mesa de sempre, o caderno aberto na frente, uma caneta girando entre os dedos. O olhar dele levantou e, pela primeira vez em semanas, eu vi o Caio que eu conhecia. Não o garoto da festa, não o que hesitou — mas o que lia as entrelinhas e enxergava o que ninguém mais via.
Sentei em frente a ele. Nenhum de nós falou de cara. Não precisava.
— Eu estava pensando… — ele disse depois de um tempo, a voz baixa — sobre a redação. Você acha que conseguiria escrever comigo?
Eu não respondi de imediato. Só olhei pro caderno entre a gente. Aquele objeto que foi, ao mesmo tempo, ponte e muralha. Respirei fundo.
— Acho que sim — falei. — Se for pra dizer a verdade.
Ele sorriu. Um sorriso pequeno, mas sincero. E então começamos.
Nas semanas seguintes, nos encontrávamos quase todos os dias. Não foi fácil. Tinha tensão, tinha insegurança, tinha medo. Mas também tinha vontade. A cada parágrafo que a gente escrevia junto, eu sentia as barreiras se desfazendo. Nós escrevíamos sobre as palavras que curam, as que machucam, as que a gente engole e as que a gente deseja ouvir. Escrevemos sobre o silêncio, sobre o peso do não-dito, sobre o medo de falar e ser mal interpretado.
E, sem perceber, a redação virou mais do que um trabalho de escola. Virou o nosso pedido de desculpas. Nossa reconciliação. Nossa forma de dizer o que as bocas ainda travavam.
No dia da apresentação, eu achei que não conseguiria. O texto precisava ser lido em voz alta na frente da turma e da banca. Meus dedos tremiam, o coração batia tão forte que parecia ecoar no auditório inteiro. Mas então Caio segurou minha mão — do jeito que sempre fazia quando eu precisava ancorar.
— Eu tô aqui — ele disse baixinho. — Se quiser, eu começo.
Balancei a cabeça. Eu sabia que eu precisava ser a primeira a falar. Era minha hora de quebrar o ciclo de silêncio.
Abri a folha e comecei a ler. A voz saiu vacilante no começo, mas foi ganhando firmeza a cada linha. Falei sobre medos, sobre esperança, sobre a importância de falar mesmo quando a voz treme. Quando terminei minha parte, passei a folha pra ele. Caio continuou. Juntos, nossas vozes se completaram.
Quando acabamos, o silêncio que veio depois foi diferente de todos que eu já tinha sentido. Não era vazio. Era cheio. Cheio de compreensão, de emoção, de respeito. A professora limpou os olhos discretamente, alguns colegas bateram palmas sem nem perceber.
Naquele instante, eu entendi. As palavras, quando verdadeiras, tinham o poder de reconstruir. De curar. De reconectar.
E Caio e eu… nós estávamos, enfim, conectados de novo.
Capítulo 6