A tempestade caía forte naquela noite. Raios riscavam o céu, e trovões sacudiam a pequena vila escondida entre as montanhas. Leo, agora com sete anos, treinava sozinho no campo de terra atrás da casa. Seus braços doíam, seus pés estavam cobertos de lama, mas ele não parava.
Então, ele ouviu.
Um gemido. Fraco. Quase afogado pelo som da chuva.
Leo estreitou os olhos. A alguns metros da cerca da vila, havia uma figura caída, coberta por um manto encharcado de sangue. O garoto correu sem pensar. Quando chegou perto, viu um homem, ferido, arfando, com os olhos semicerrados.
— Quem… é você? — perguntou Leo, abaixando-se ao lado dele.
O homem não respondeu. Ao invés disso, estendeu a mão e soltou uma bolsa de couro. Dentro, havia um livro antigo, com o brasão dos Clãs gravado na capa.
Leo puxou o corpo do homem até uma cabana vazia, que usavam para guardar ferramentas. Lá, acendeu o fogo, estancou os ferimentos como Galan lhe ensinara e esperou.
[Conversa com Galan]
Na manhã seguinte, Leo procurou Galan.
— Aquele homem que eu encontrei... ele é o traidor, não é?
Galan encarou Leo com seriedade.
— Ele é um fugitivo procurado. Um homem que desafiou o Reino. Mas não sei seu nome verdadeiro... nunca foi confirmado. Só sei que ele era do alto escalão... e desapareceu depois de se recusar a obedecer ordens do Clã Escarlate.
— E você deixou ele viver?
Galan suspirou.
— Esse Reino já não merece obediência cega, Leo. Se ele resistiu ao domínio dos Escarlate, então não é meu inimigo. Talvez ele tenha feito o que todos nós deveríamos ter feito.
Leo baixou os olhos.
— Ele tá muito ferido... Mas ainda está vivo.
Galan assentiu lentamente.
— Se ele quiser te ensinar... aceite. Mas tome cuidado. Homens como ele têm cicatrizes que nem sempre se veem.
[A primeira conversa entre Leo e “Gael”]
Horas depois, o homem abriu os olhos. Seu rosto estava pálido e a respiração irregular.
— Você... de novo — murmurou.
Leo se aproximou com um pano úmido.
— Galan me contou sobre você. Que você foi alguém importante... um traidor para o Reino.
O homem arregalou levemente os olhos.
— Então vai me entregar?
Leo balançou a cabeça.
— Não. Não quero fazer isso. Se o Reino te quer morto, talvez você tenha feito algo certo.
O homem respirou fundo.
— E... como se chama?
— Leo.
— E você quer saber o meu nome?
— Se for me contar.
Ele hesitou.
— Gael. Pode me chamar de Gael.
Leo assentiu.
— Quero que me ensine a lutar, Gael.
Gael franziu o cenho.
— Ensinar? Olhe pra mim. Mal consigo me mover. Esse ferimento me deixou aleijado.
Leo foi direto:
— Não preciso que lute. Só diga o que fazer. Eu executo. Você observa. Corrige. E eu repito.
Gael olhou para ele com estranheza.
— Por que quer aprender a lutar?
Leo hesitou, depois encarou o fogo.
— Quero proteger quem eu amo. As pessoas que me acolheram. E...
Fez uma pausa. O olhar ficou mais duro.
— Também tenho coisas a resolver.
Gael se calou. Havia algo na voz do garoto... um peso. Determinação demais para tão pouca idade.
— Hmph... — Gael suspirou. — Eu já fui como você. Quis mudar as coisas. Me recusei a seguir ordens podres. No fim... quase morri por isso.
Ele olhou para a perna mal enfaixada, cheia de cicatrizes.
— Essa perna me lembra todos os dias que lutar não é suficiente. Mas já que não consigo mais dar desculpas...
Ele esboçou um meio sorriso cansado.
— ...vamos lá, garoto.
Leo sorriu pela primeira vez.
— Me ensina tudo.
[Montagem de Treinamento]
Os dias que se seguiram foram intensos. Gael, mesmo sem conseguir andar, observava cada movimento. Sentado ou deitado, usava um bastão como referência, apontando erros e dando instruções com precisão.
— Respiração! Postura! Você luta como um coelho cego! — gritava.
Leo escorregava na lama, caía, errava. Mas levantava. Sempre. Os músculos doíam, mas seu olhar não vacilava.
Gael ensinava a ler o oponente, a usar o peso do corpo, a mover-se com propósito. Mostrava posições de guarda, formas de evadir, e, por fim, revelou sua técnica mais valiosa:
Visão de Abertura.
— Concentre-se no inimigo. Apague tudo ao redor. Espere. Quando ele pensar em atacar… você já saberá. E então, ataque primeiro.
Leo tentou. E falhou. Tentou de novo. E falhou de novo.
Mas no décimo segundo dia, algo clicou.
Leo desviou de um golpe simulado antes mesmo que Gael falasse. Contra-atacou com firmeza.
Gael se calou por um instante. O garoto estava absorvendo tudo com uma velocidade assustadora.
— Isso... levou anos pra eu aprender.
Leo estava suado, exausto, mas seus olhos estavam calmos.
— Eu não tenho esse tempo.
[A Despedida com Revelação]
Na manhã do décimo quarto dia, Leo acordou e não encontrou Gael na cabana.
Correu até a beira da vila e o viu ali — em pé com dificuldade, vestindo uma armadura leve improvisada.
— A patrulha está se aproximando — disse Gael. — Vieram por mim.
— Vai lutar?
— Não. Só vou desaparecer. Eles não precisam morrer por minha causa.
Ele se virou para Leo. Seus olhos estavam mais suaves do que nunca.
— Leo... não esqueça o que você é. Lute... mas lute por algo que valha a pena. Pela luz de quem você quer proteger.
Ele começou a andar com dificuldade.
— Espere! — Leo correu até ele. — Seu nome... de verdade.
O homem parou, respirou fundo... e virou o rosto por cima do ombro.
— Kael. Kael de Solarian. Já tive quatro estrelas no meu auge. Isso só me fez cair mais alto.
Leo arregalou os olhos.
— Quatro estrelas...? Solarian...? O que é isso?
Kael apenas sorriu.
— Quando for a hora certa, você vai entender.
E desapareceu entre a neblina, deixando apenas o som da chuva leve e a respiração presa no peito de Leo.
[Cena Final – O Livro e o Silêncio]
Naquela noite, Leo voltou para a cabana silenciosa. Sentou-se diante do fogo e abriu o livro que Kael havia trazido. A capa exibia o brasão antigo dos Clãs.
Ele folheou as páginas com cuidado, procurando algo. Um nome. Um sinal.
Mas não havia nada. Nem o nome de sua mãe. Nem o de seu pai.
A linhagem do Clã Safira terminava décadas atrás.
Leo encarou o brasão. Ficou alguns segundos em silêncio.
— Claro que não teria... — murmurou.
Fechou o livro com força e, sem hesitar, jogou-o no fogo.
As chamas dançaram. Lá fora, a tempestade havia cessado.