Capítulo — Vigílias e Verdades
Dois dias após deixarem sua vila, Galan e os filhos chegaram finalmente a Kalden.
Conseguiram parte do trajeto pegando carona com uma rede mercante itinerante, o que encurtou bastante a jornada. Durante o caminho, o grupo permaneceu atento, pois Galan havia alertado: Kalden ficava próxima da fronteira sul, onde o rastro da guerra ainda se arrastava como brasa acesa debaixo da terra.
Ao avistarem a vila ao longe, logo notaram algo errado.
Kalden não estava destruída, mas havia marcas recentes de confronto. Algumas casas apresentavam pedaços queimados, portas arrancadas, e um pequeno grupo de moradores vagava pelas ruas de cabeça baixa. Um cheiro fraco de cinzas ainda impregnava o ar.
No centro da vila, uma faixa improvisada com trapos vermelhos indicava a presença de soldados.
— Parece que chegaram tarde — comentou Aaron em voz baixa.
— Chegaram tarde de novo — murmurou Galan, quase para si mesmo.
Segundo os locais, os Escarlates, divisão militar de elite do Reino de Asha, haviam aparecido após o ataque, protegendo o restante da vila — mas alguns moradores haviam morrido na espera.
A própria presença dos Escarlates causava desconforto. Galan manteve os filhos por perto, e mesmo Sarah — com seu arco às costas — percebia os olhares que o grupo atraía.
Ao cair da tarde, foram buscar pouso em uma taverna rústica, onde soldados ocupavam uma grande mesa, rindo e bebendo alto.
A Taverna
A taverna estava cheia, mas o clima era opressivo. Os moradores locais mantinham distância dos soldados. Atrás do balcão, uma jovem servia canecas com rapidez, visivelmente tensa.
Em certo momento, um dos soldados — bêbado e mais ousado — segurou o braço da moça, tentando forçá-la a ficar ali com ele. Ela tentou se soltar com firmeza, mas sem sucesso.
Galan se levantou em silêncio.
Caminhou até o soldado com calma. Seus olhos encontraram os do homem, e embora não dissesse nada imediatamente, o olhar carregava o peso de quem já enfrentou guerras e sobreviveu.
O soldado o encarou, semicerrando os olhos. Ficou assim por alguns segundos… até que soltou o braço da garota.
Olhou em volta, viu seus dois colegas rindo, e então zombou:
— Calma, calma, velhote… era só uma brincadeirinha.
Seus olhos então passaram por Sarah, Leo e o Aaron.
— Mas se ficar muito tenso… eu posso brincar com outras pessoas, quem sabe?
O ar congelou.
Galan, no entanto, não reagiu. Continuou calmo, como se nada tivesse sido dito.
— Bom trabalho ao senhor.Sem mais, fez sinal aos filhos.Sem dizer uma palavra, todos saíram da taverna.
Lá fora
Já na rua, Leo se aproximou, visivelmente irritado.
— Por que deixou ele falar aquilo? Você viu o que ele ia fazer com a garota. E depois… com a gente?
Galan continuou andando, os olhos atentos aos arredores.
— Porque somos uma família. E eles são os Escarlates.
Leo estacou.Seu coração apertou ao ouvir aquele nome. Ele sabia quem eram.
— Foram eles… — murmurou Leo.
Galan parou e o encarou com seriedade:
— Então você entende. Se enfrentássemos ali, todos nós morreríamos… e seríamos chamados de traidores. Não vale a pena morrer por orgulho. Não agora.
Leo cerrou os punhos, mas não respondeu. Os outros também entenderam o recado.
A Volta do Soldado
Enquanto o grupo se distanciava, passos rápidos se aproximaram. Era o mesmo soldado, cambaleando, com um copo ainda na mão.
— Ei! Velhote! — gritou. — Acha que pode me encarar e sair andando como se mandasse na vila?
Galan parou.Sarah se virou com o olhar afiado. Aaron ficou tenso. Erwin já levava a mão à arma na cintura.
Mas antes que qualquer coisa acontecesse, uma voz autoritária se ergueu da sombra:
— Soldado Krail!Era o comandante dos Escarlates, alto, de postura rígida e olhos frios.
— Já causou encrenca suficiente por uma noite. Pare de azucrinar as famílias da vila.
O soldado parou imediatamente. Ainda trocou um olhar rancoroso com Galan, mas bufou, ergueu as mãos e voltou para a taverna, rindo sozinho.
Galan nem o olhou. Apenas disse:
— Vamos descansar. Amanhã cuidamos do que viemos buscar e partimos.
A noite caiu sobre Kalden com um silêncio desconfortável. As poucas luzes da vila mal conseguiam afastar o frio ou a tensão que rondava desde a chegada do grupo.
Galan conseguiu garantir uma estalagem simples para todos, um quarto apertado com colchões improvisados no chão. Judith e os menores dormiam juntos, enquanto Galan repousava encostado próximo à porta.
Mas Leo acordou no meio da madrugada.
Seus olhos demoraram a se ajustar à escuridão, mas logo viu a silhueta de Galan, sentado, firme e desperto. A mão repousava sobre a espada ao lado.
Ele não dormia. Estava de vigia.
Leo se ergueu em silêncio, foi até Aaron e o sacudiu com cuidado.
— Acorda. Vamos revezar. Ele já tá velho demais pra passar a noite inteira acordado.
Aaron coçou os olhos, mas assentiu. Em poucos minutos, os dois assumiram a posição perto da porta, e Leo se aproximou de Galan.
— Vai descansar um pouco. A gente cuida agora.
Galan o olhou por um instante, os olhos cansados mas cheios de orgulho silencioso. Não discutiu. Apenas levantou e deitou em silêncio, adormecendo quase de imediato.
Antes do Amanhecer
Antes mesmo do sol nascer, Galan despertou. Os meninos ainda estavam de vigia, cochilando em turnos curtos, mas ele não os acordou.
Saiu sozinho, caminhando pelas ruas frias e úmidas de Kalden. Os postes de tochas crepitavam lentamente, lançando sombras nas construções danificadas.
Foi então que viu uma figura solitária, encostada num pilar da entrada principal da vila: o comandante dos Escarlates.
O mesmo homem que havia impedido o conflito na taverna.
Galan se aproximou devagar.
— Eu devia agradecer pelo que fez ontem — disse, com um tom calmo.
O comandante, que estava com os braços cruzados, respondeu sem tirar os olhos da rua:
— Ele não teria feito nada além de brigar. Mesmo bêbado, sabe até onde pode ir.
— E até onde ele pode ir? — Galan questionou.
O homem suspirou.
— Com tudo o que aconteceu nos últimos anos, o último clã Escarlate que reina em Asha não pode se dar ao luxo de irritar ainda mais a população.Há revoltas em vilarejos, sabotagens nas fronteiras…Alguns de nós — comandantes como eu — tentam evitar que idiotas como aquele soldado alimentem o ódio ainda mais.
Galan o observou em silêncio por um momento, depois disse, com um peso na voz:
— O Rei Astra Escarlate já fez o que queria… os outros três clãs se foram.
O comandante olhou de lado, sério.
— Verdade. Mas por que estou dizendo isso a você?
Deu um pequeno passo à frente, abaixou um pouco a voz.
— Porque todos pensam que só há mal nos Escarlates… mas isso é uma mentira.Há aqueles que se sacrificam, mesmo dentro de algo podre.Nem todo soldado escarlate é um monstro.E nem todo civil é inocente.
Galan ficou em silêncio por alguns segundos, digerindo as palavras.
— E o que você é?
O comandante sorriu de canto.
— Um homem cansado, Galan. Um dos poucos que ainda acreditam que algo pode ser salvo antes que tudo desmorone.
Ele se virou, pronto para partir.
— Agora que você está acordado, vou dormir um pouco. Cuide da sua família.
Galan franziu o cenho, surpreso.
— Você ficou a noite toda…?
O comandante parou, sem olhar para trás.
— Alguém precisava ficar acordado.
Galan deu um passo.
— Qual seu nome?
A resposta veio curta, firme, sem hesitação:
— Kane de Imperis.
E então ele sumiu na névoa da rua, deixando Galan sozinho com o silêncio da madrugada… e com muitas perguntas.