A noite estava silenciosa demais para tempos de guerra.
Galan estava recostado no batente da porta, braços cruzados, encarando o vazio da noite. As chamas da lareira tremulavam atrás dele, projetando sua sombra larga nas paredes da casa. Judith, sentada à mesa, terminava de enrolar ataduras num pano. Os olhos cansados, mas atentos.
— Recebi uma mensagem de Mirdar — disse Galan, quebrando o silêncio. — A Legião do Leste... foi destruída. Todos mortos. Um comandante importante foi capturado pelos Draverns.
Judith parou o que fazia. Seus dedos congelaram sobre o pano.
— Isso muda tudo. Se até legiões inteiras estão caindo...
— Eles vão começar a recrutar mais cedo — completou Galan. — Crianças a partir dos doze anos. Estão desesperados.
Judith o encarou, firme. Mas havia medo por trás daquela firmeza.
— Então a guerra chegou mesmo, não é?
— Chegou.
Ela respirou fundo, se levantando devagar.
— Eu quero fugir. Levar as crianças... sumir. Ir para o sul, para o campo, qualquer lugar onde não haja armas e morte.
Galan balançou a cabeça, pesaroso.
— Não dá. Não existe essa possibilidade. Estamos cercados. E mesmo que desse, eles encontrariam a gente cedo ou tarde. Eu... — ele fez uma pausa — ...tô fazendo de tudo para garantir que eles sobrevivam. E, honestamente, com tudo o que fizeram até agora... há uma grande chance. Eles são diferentes.
Judith apertou os lábios. A tensão entre eles se dissolveu em um silêncio denso.
Galan então se virou para a porta e chamou alto:
— Todos. Quero vocês aqui agora.
Os passos vieram correndo. Um a um, os filhos de Galan e Judith entraram: Aaron à frente, Sarah ao lado, Daren com os punhos cerrados, Erwin com as mãos nos bolsos, Milo quieto, e por fim, Leo, sempre um pouco mais atrás, com o olhar grave.
Todos se sentaram no chão, formando um semicírculo diante dos pais.
Galan suspirou.
— Preciso saber o que vocês querem. A verdade. Vai haver recrutamento. E não dá mais para fugir disso. Um por um.
Erwin deu de ombros, meio constrangido, mas com firmeza.
— Eu... não sei. Não tô muito afim, para ser honesto. Não quero morrer por uma guerra que nem entendo direito... mas, eu não sou fraco. — olhou para a mãe com um sorrisinho rápido. — Então, mãe, não vou morrer. Pode confiar.
Judith sorriu com lágrimas nos olhos, dividida entre o medo e o orgulho.
Galan assentiu. Sem julgamento.
— Daren?
— Eu quero lutar. — respondeu ele, sem hesitar. — Eles destruíram vilas, atacaram inocentes. Quero proteger nossa casa.
Galan respirou fundo e olhou para Aaron.
O mais velho cruzou os braços.
— Se o reino cair, meu pai e minha mãe vão morrer. Todos os nossos amigos. Não é sobre querer. É sobre impedir que tudo acabe.
Judith virou-se para Sarah antes que ela falasse.
— Você não precisa disso, Sarah. Você é uma menina. Pode ficar comigo. Sobreviver. Isso basta!
Mas Sarah não aceitou.
— Não. — disse ela, firme. — Eu não consigo só olhar. A luta contra Krail... eu vi. Eu consegui atingir ele. Fiz diferença. Eu não sou fraca, mãe. Eu quero proteger.
Galan olhou com um leve sorriso de orgulho, discreto.
— Milo?
O garoto abaixou os olhos.
— Eu não tenho idade. E... sinceramente, nunca quis guerra. Quero ficar aqui. Ajudar vocês. Cuidar da casa, do que sobrar dela.
Galan assentiu, respeitoso. E por fim, seu olhar pousou em Leo.
Silêncio.
Leo respirou devagar. O olhar firme, sem desviar.
— Eu vou. E... eu não vou deixar que ninguém morra.
Galan ficou em silêncio por alguns segundos. Respirou fundo, observando cada rosto ali com a atenção de um pai e o peso de um guerreiro experiente. Havia silêncio, exceto pelo estalar da lenha na lareira.
Ele então se levantou.
— Podem ir descansar. Todos. Amanhã vai ser um dia longo.
Judith levantou também e, com um gesto suave, conduziu os filhos para fora da sala. Mas antes de sair, Galan estendeu um braço à frente de Leo.
— Você... fica.
Galan olhou para Judith, que apenas assentiu e continuou o caminho com os outros.
Quando a casa ficou em silêncio, Galan se aproximou da janela. A luz da lua entrava fraca, iluminando seu rosto marcado pelo tempo e pela guerra.
— Leo... — começou, com a voz grave — Você já sabe disso, mas é hora de ouvir com todas as palavras. Quem comanda tudo isso... essa guerra, essa loucura... é o clã Escarlate.
Leo não respondeu de imediato. Seu rosto endureceu, os olhos cravados no chão.
— Aquele homem, o da cicatriz, o que matou seus pais... — continuou Galan — ele não é só mais um. Ele pode estar lá. Pode cruzar seu caminho a qualquer momento.
Houve um silêncio longo. Galan encarou Leo, esperando alguma reação, algum tremor. Mas foi interrompido.
— Eu já pensei bem nisso. — disse Leo, finalmente, com a voz baixa, firme.
Galan ficou em silêncio, atento.
— Ainda dói muito tudo que aconteceu. Às vezes, eu acordo e esqueço por um segundo. Mas quando lembro... sinto como se fosse ontem. — ele ergueu os olhos, e havia algo sombrio ali — Sinceramente? Eu quero matar ele.
Galan não se moveu. Apenas ouvia.
— Mas... quando penso que meus irmãos e minha nova família podem se prejudicar por causa disso... eu não quero agir por impulso. Não sem usar a cabeça.
Fez uma pausa. Depois, a voz ficou mais pesada.
— Mas se, em algum momento, eu ficar sozinho com ele... desculpa, Galan. Mas ele vai morrer.
O guerreiro fechou os olhos por um instante, como se buscasse forças em silêncio.
— Eu não consigo te impedir, né?
— Não. — Leo respondeu sem hesitar. — Eu... não consigo pensar nisso tudo e não ter vontade de chorar, Galan. Eu ainda sinto medo. Ainda tenho medo. Mas eu acho que tenho que dar um fim a tudo isso.
Ele olhou para o homem que o criou, com os olhos marejados, porém firmes.
— Vocês são...
Houve uma pausa, leve, como se engolisse um nó na garganta.
— ...aqueles que me acolheram. Mas meu pai... e minha mãe... merecem vingança.
Galan se aproximou, colocou uma das mãos pesadas sobre o ombro de Leo.
— Só me promete uma coisa.
Leo ergueu os olhos.
— Se esse dia chegar... lute como você sempre lutou. Não com ódio. Com propósito.
Leo não respondeu. Apenas assentiu, devagar.
A guerra já havia começado. Mas agora, era pessoal.