Capítulo 2 – Vinte anos depois

O som dos cascos do cavalo misturava com o vento quente da manhã. O sol batia forte sobre as plantações secas, e o pó subia da estrada de terra como uma lembrança velha que ninguém mais queria lembrar. Florencia caminhava sozinha, com uma sacola no ombro e o rosto queimado do sol.

Tinham se passado vinte anos desde aquela noite. A noite em que sua mãe morreu. A noite em que ela nasceu.

Florencia cresceu na casa de Dona Candinha, que agora estava velha demais pra sair da cama. Era Flor quem cuidava dela, da casa, das galinhas, da horta e ainda lavava roupa pra fora. Não era fácil — nunca foi — mas ela aprendeu a aguentar. Aprendeu a calar, quando precisava. E a levantar, quando o mundo queria ver ela no chão.

O vilarejo continuava pequeno, parado no tempo. As famílias ricas lá de cima ainda mandavam em tudo. Os Montebello, os Montenegro. Os nomes que ela aprendeu a odiar, mesmo sem saber exatamente por quê. Só sabia que a mãe dela tinha morrido por causa deles.

Flor nunca foi de perguntar. Mas também nunca esqueceu.

Naquela manhã, ela ia entregar umas peças de roupa lavadas na mansão dos Montebello. Era a primeira vez que botava os pés naquele lugar. Tinha ouvido histórias: festas, cavalos, empregados correndo de um lado pro outro. Mas agora, com o patriarca doente, diziam que quem mandava era o filho. Leonardo.

Flor não conhecia ele pessoalmente. Só de nome. Mas o nome já incomodava.

— "Não demora, menina" — disse Dona Candinha antes dela sair. — "Esses ricos gostam de medir pobre com os olhos."

A mansão era maior do que ela imaginava. Os portões de ferro estavam abertos. Quando ela entrou, sentiu um arrepio estranho. O mesmo vento quente da estrada agora parecia soprar gelado na nuca.

Florencia seguiu por um caminho de pedras até a porta principal. Bateu duas vezes. Esperou. Uma empregada abriu.

— “Entrega de roupa,” disse Flor, firme.

A mulher a olhou de cima a baixo, com um meio sorriso.

— “Pode entrar. O patrão quer ver quem é você.”

Flor hesitou. Aquilo não era comum. Mas entrou.

O salão era enorme. Tapetes caros, cortinas pesadas, cheiro de perfume e madeira encerada. Cada detalhe parecia gritar: “Você não pertence aqui.”

E então ele apareceu no alto da escada.

Leonardo.

Alto, pele bronzeada, camisa aberta no peito e um olhar curioso. Os olhos dele pousaram em Flor como se estivesse tentando lembrar de onde conhecia. Mas ela sabia — eles nunca se viram. Mesmo assim, sentiu algo estranho.

— “Você que é a tal da Florencia?”, ele perguntou.

Ela ergueu o queixo.

— “Sou eu mesma. E só vim entregar roupa, nada mais.”

Leonardo sorriu de leve, mas o olhar dele era firme.

— “Tem alguma coisa em você... não sei explicar.”

— “Pois não tente, moço. Não tô aqui pra ser explicada.”

O silêncio ficou pesado por uns segundos. E então ele desceu.

— “Desculpa. Não era minha intenção ofender.”

Ela não respondeu. Entregou a sacola, fez menção de ir embora.

— “Você é filha de quem?”, ele perguntou, de repente.

Flor parou.

— “De ninguém que interessa aos Montebello.”

E saiu sem olhar pra trás.

Do alto da varanda, outra figura observava tudo. Verônica Montenegro. Os cabelos arrumados, as unhas pintadas, e um sorriso frio que cresceu devagar no canto dos lábios.

— “Então... a bastardinha cresceu”, ela sussurrou pra si mesma.

Naquele instante, o passado começava a despertar. E Florencia, sem saber, tinha dado o primeiro passo pra dentro de um mundo que jurou nunca se envolver.

Mas o destino... o destino tem seus próprios planos.