Florencia voltou pelo mesmo caminho de terra, mas não sentia mais o chão debaixo dos pés. A imagem de Leonardo Montebello grudou nela como poeira da estrada — impossível de ignorar. Aqueles olhos, aquele jeito de falar, aquela mania de querer entender o que não era da conta dele.
— "Montebello... igualzinho ao pai", resmungou pra si mesma. — "Se acha dono até do ar."
Mas alguma coisa no jeito dele a incomodava de outro jeito. Não era só raiva. Era um incômodo diferente, daqueles que mexe com a gente por dentro.
Dois dias depois, Flor estava estendendo lençóis no quintal quando ouviu um cavalo chegando. Ela largou o varal e se virou. Leonardo desceu do cavalo como se fosse a coisa mais normal do mundo aparecer ali, no bairro pobre, com a roupa branca limpa e a cara de quem nunca lavou nem um prato.
— “Veio fazer o quê aqui?”, ela perguntou, já de braços cruzados.
— “Vim devolver sua sacola. E... pedir desculpas.”
Flor arregalou um pouco os olhos, surpresa. Não esperava por isso. E menos ainda esperava que ele descesse do cavalo e fosse até ela.
— “Não precisava ter vindo. Eu buscava depois.”
— “Mas eu queria vir.”
O silêncio ficou ali entre os dois, pesando de novo.
— “Você sempre fala assim com todo mundo?”, ele perguntou, tentando sorrir.
— “Só com quem acha que pode mandar nos outros.”
Leonardo coçou a nuca, meio sem graça.
— “Você tem razão. Às vezes... eu nem percebo como falo. Cresci ouvindo que tudo era meu. Mas você... você fala diferente. Parece que já nasceu sabendo se defender.”
Flor desviou o olhar. A verdade era que sim. Aprendeu cedo a se virar. E agora ele tava ali, bonito, gentil, olhando pra ela como se enxergasse além da roupa simples e do cabelo amarrado.
— “E você? Cresceu ouvindo que era melhor que todo mundo?”, ela perguntou, sem ironia, mas também sem doçura.
— “Talvez. Mas nunca acreditei de verdade. Só... nunca conheci alguém que me fizesse pensar nisso. Até agora.”
Flor o olhou de novo. Por um segundo, os olhos deles se encontraram e o mundo ficou mudo.
O vento soprou devagar, levantando o pano no varal, e uma rosa vermelha que Flor tinha deixado na janela caiu no chão entre os dois.
Ela se abaixou pra pegar.
— “Já vai?”, perguntou, ainda sem olhar pra ele.
— “Só se você quiser que eu vá.”
Flor hesitou. Pensou em dizer sim. Mandar ele embora e fechar a porta. Mas a voz não saiu. Em vez disso, ela falou baixo:
— “Não tenho café pra oferecer.”
— “Eu aceito água”, respondeu ele, sorrindo com um canto da boca.
Ela entrou. Ele ficou na porta, observando o quintal simples, o cheiro de sabão no ar, o pé de goiaba no canto.
Era um mundo novo pra ele. Mas ali, naquela simplicidade, havia algo que faltava na vida dele: verdade.
Flor voltou com um copo d’água.
Ele bebeu devagar, como se fosse vinho.
— “Obrigado”, disse, encarando ela.
— “Não se acostuma.”
Leonardo riu. Um riso verdadeiro, meio surpreso.
— “Você é mesmo diferente.”
— “E você... ainda é um Montebello.”
Ele assentiu, sério.
— “Mas talvez não por muito tempo.”
Flor franziu a testa, sem entender.
— “Como assim?”
— “Tem coisas acontecendo... dentro da família. Coisas que eu preciso resolver. E talvez... eu precise da ajuda de alguém que não tenha medo de falar a verdade.”
Ela riu, um riso curto e sem paciência.
— “Eu? Ajudar rico? Vai sonhando, doutor.”
Mas por dentro, algo já começava a mudar.
Ela não queria. Mas queria.
E isso era só o começo.