Florencia não conseguiu esquecer as palavras de Verónica. "Eu já destruí a mãe que te pariu." Aquilo ecoava como um trovão abafado, dia e noite.Flor não sabia tudo… mas sabia o suficiente pra começar.
Ela decidiu voltar onde tudo começou: a vila velha de São Tiago.
Foi ali, vinte anos atrás, que sua mãe, mariana, viveu os últimos dias. E foi ali que nasceu Florencia — num barraco, num parto sem parteira, no meio da madrugada.A mãe sangrou. Pediu ajuda. Mas ninguém veio.
Pelo menos era o que diziam.
Chegando na vila, Flor bateu de porta em porta, questionando por alguém que conheceu Aurora. A maioria era silêncio ou desculpa. Mas uma mulher, já velha e trêmula, finalmente falou:
— "Eu lembro... Ela era bonita. Usava um lenço azul na cabeça. Trabalhava lavando roupa pro povo rico."
Flor engoliu seco. A mulher chamava-se Dona Lúcia, morava sozinha numa casa torta, cheirando a cânfora e poeira.
— “A senhora lembra do dia que ela morreu?”, perguntou Flor, sentando na cadeira de palha.
Dona Lúcia desviou os olhos.
— "Lembrar, eu lembro. Mas não deve falar disso..."
— “Por favor.”
A velha suspirou.
— "Naquela noite... chovia. Eu vi da minha janela. Vi ela bater no portão da mansão Montenegro. Gritava, pedindo socorro. Tava com a barriga inchada. Chorava. Pedia pra alguém abrir."
Flor abriu as mãos com força.
— “E abriram?”
— "Não. Ninguém saiu. Ela ficou ali até cair de joelhos. Quando o choro parou... eu descobri. Mas tive medo. Todo mundo temia aquela mulher."
— “Verónica.”
Dona Lúcia assentiu, os olhos úmidos.
— "Ela apareceu depois. Mandou enterrar o corpo sem barulho. Disse que era pra não 'sujar o nome da família'. Mandaram um homem enterrar perto do rio."
Flor sentiu o chão fugir sob os pés. Então era verdade.Sua mãe morreu implorando socorro… ignorada como se fosse um bicho.
— "E esse homem? O que enterrou?"
A velha fez uma careta.
— "Chamavam ele de Bastião. Era o capataz da época. Sumiu do povoado anos depois. Mas dizem que mora nas colinas do norte. É um bêbado agora."
Flor se falou com o coração batendo forte. A primeira pista concreta.
— “Vou atrás dele.”
Dona Lúcia pegou na mão dela com delicadeza.
— "Vai com cuidado, menina. Mexer com passado é perigoso. E os Montenegro ainda têm dentes."
Flor sincera, mas o sorriso era triste.
— “Mas eu tenho espinhos.”
Na saída da vila, Flor olhou pro céu escurecendo.A dor que sentiu era antiga, ancestral. Mas agora tinha um boato.
Não era mais só vingança. Era justiça.
E nada — nem o medo, nem o poder dos Montenegro — ia fazer-la parar.