As colinas do norte não eram longe, mas pareciam outro mundo. O mato era alto, as trilhas confusas, e o ar cheirava a madeira queimada e abandono. Florencia andava com cuidado, perguntando aqui e ali, até que uma senhora lhe apontou uma cabana com o telhado torto, coberto de folhas secas.
— “Ele mora lá. Mas cuidado… tem dias que não reconhece nem o próprio nome.”
Flor se aproximou devagar. Bateu na porta de madeira com os nós dos dedos. Ninguém respondeu. Bateu de novo, mais forte.
A porta abriu-se com um rangido.
E lá dentro, sentado numa cadeira bamba, estava Bastião — velho, barba longa, olhos fundos como buraco de poço. Um copo de cachaça tremia em sua mão.
— “O que quer?”
Flor respirou fundo.
— “Saber a verdade sobre minha mãe. Aurora.”
O homem ficou em silêncio. Olhou pra ela por um momento que pareceu longo demais.
— “Você tem os olhos dela… e a boca do canalha que a engravidou.”
— “Então lembra.”
Ele virou o copo, limpou a boca com o braço sujo.
— “Como esquecer?”
Flor entrou. O lugar fedia a bebida e tempo. Sentou num banco de madeira, diante dele.
— “Me conte.”
Bastião passou a mão no rosto. Os olhos começaram a brilhar, mas não era de emoção. Era peso. Era culpa.
— “Naquela noite, me chamaram às pressas. Dona Verónica tava furiosa. Disse que tinha uma ‘indesejada’ fazendo escândalo no portão.”
— “Indesejada…”
— “Era sua mãe. Gritava. Dizia que ia parir ali mesmo se ninguém ajudasse. Eu pedi pra deixar entrar. Mas Verónica me deu um tapa. Disse: ‘Se ela morrer, melhor ainda’.”
Flor sentiu um nó subir na garganta.
— “E você fez o quê?”
— “Fiquei lá fora, escondido. Vi quando ela caiu. Quando o choro virou silêncio. Esperei a madrugada. E enterrei ela com minhas mãos, na beira do rio. Tava... fria.”
— “E o bebê?”
— “Você... já tinha nascido. Tava embrulhada num pano velho, chorando baixo. Achei que não ia viver. Mas você abriu os olhos… e me encarou. Aquilo me arrepiou. Deixei você na porta da velha Rosa, a parteira cega. Achei que era mais seguro.”
Flor levou a mão à boca. Parte da história que ninguém contava estava ali, desabada sobre ela como tempestade.
— “E por que nunca contou isso a ninguém?”
— “Porque eu sou covarde. E porque a família Montenegro pagou bem pra eu sumir.”
Silêncio. Só o vento, assobiando entre as frestas da cabana.
— “Tem alguma prova?”
Bastião olhou em volta. Apontou pra uma caixa velha de madeira num canto escuro.
— “Lá tem a fita azul da sua mãe. E o anel que ela usava. Escondi tudo. Como se guardar lembrança fosse compensar minha fraqueza.”
Flor se levantou, foi até a caixa. Tirou o lenço. Era gasto, mas ainda tinha o cheiro de sabão e tristeza. O anel era simples, de prata, com as iniciais "A.M." — Mariana Monteiro.
Ela o segurou como se fosse a própria mão da mãe.
— “Eu vou levar isso pra polícia”, disse ela.
Bastião soltou uma risada amarga.
— “Não vai dar em nada. Eles ainda têm amigos em todo canto. Mas talvez... se o povo souber…”
Flor olhou firme.
— “Eles vão saber. Eu juro.”
E saiu da cabana com o lenço e o anel. O sol já se punha de novo. O mesmo sol que, vinte anos atrás, havia se posto sobre o corpo da sua mãe.
Mas agora, a terra estava pronta pra gritar a verdade.