Capítulo 8 – A Terra que Grita

As colinas do norte não eram longe, mas pareciam outro mundo. O mato era alto, as trilhas confusas, e o ar cheirava a madeira queimada e abandono. Florencia andava com cuidado, perguntando aqui e ali, até que uma senhora lhe apontou uma cabana com o telhado torto, coberto de folhas secas.

— “Ele mora lá. Mas cuidado… tem dias que não reconhece nem o próprio nome.”

Flor se aproximou devagar. Bateu na porta de madeira com os nós dos dedos. Ninguém respondeu. Bateu de novo, mais forte.

A porta abriu-se com um rangido.

E lá dentro, sentado numa cadeira bamba, estava Bastião — velho, barba longa, olhos fundos como buraco de poço. Um copo de cachaça tremia em sua mão.

— “O que quer?”

Flor respirou fundo.

— “Saber a verdade sobre minha mãe. Aurora.”

O homem ficou em silêncio. Olhou pra ela por um momento que pareceu longo demais.

— “Você tem os olhos dela… e a boca do canalha que a engravidou.”

— “Então lembra.”

Ele virou o copo, limpou a boca com o braço sujo.

— “Como esquecer?”

Flor entrou. O lugar fedia a bebida e tempo. Sentou num banco de madeira, diante dele.

— “Me conte.”

Bastião passou a mão no rosto. Os olhos começaram a brilhar, mas não era de emoção. Era peso. Era culpa.

— “Naquela noite, me chamaram às pressas. Dona Verónica tava furiosa. Disse que tinha uma ‘indesejada’ fazendo escândalo no portão.”

— “Indesejada…”

— “Era sua mãe. Gritava. Dizia que ia parir ali mesmo se ninguém ajudasse. Eu pedi pra deixar entrar. Mas Verónica me deu um tapa. Disse: ‘Se ela morrer, melhor ainda’.”

Flor sentiu um nó subir na garganta.

— “E você fez o quê?”

— “Fiquei lá fora, escondido. Vi quando ela caiu. Quando o choro virou silêncio. Esperei a madrugada. E enterrei ela com minhas mãos, na beira do rio. Tava... fria.”

— “E o bebê?”

— “Você... já tinha nascido. Tava embrulhada num pano velho, chorando baixo. Achei que não ia viver. Mas você abriu os olhos… e me encarou. Aquilo me arrepiou. Deixei você na porta da velha Rosa, a parteira cega. Achei que era mais seguro.”

Flor levou a mão à boca. Parte da história que ninguém contava estava ali, desabada sobre ela como tempestade.

— “E por que nunca contou isso a ninguém?”

— “Porque eu sou covarde. E porque a família Montenegro pagou bem pra eu sumir.”

Silêncio. Só o vento, assobiando entre as frestas da cabana.

— “Tem alguma prova?”

Bastião olhou em volta. Apontou pra uma caixa velha de madeira num canto escuro.

— “Lá tem a fita azul da sua mãe. E o anel que ela usava. Escondi tudo. Como se guardar lembrança fosse compensar minha fraqueza.”

Flor se levantou, foi até a caixa. Tirou o lenço. Era gasto, mas ainda tinha o cheiro de sabão e tristeza. O anel era simples, de prata, com as iniciais "A.M." — Mariana  Monteiro.

Ela o segurou como se fosse a própria mão da mãe.

— “Eu vou levar isso pra polícia”, disse ela.

Bastião soltou uma risada amarga.

— “Não vai dar em nada. Eles ainda têm amigos em todo canto. Mas talvez... se o povo souber…”

Flor olhou firme.

— “Eles vão saber. Eu juro.”

E saiu da cabana com o lenço e o anel. O sol já se punha de novo. O mesmo sol que, vinte anos atrás, havia se posto sobre o corpo da sua mãe.

Mas agora, a terra estava pronta pra gritar a verdade.