Parte 2 – O Descompasso do Silêncio e da Água
No subsolo escuro do orfanato, onde fungos cresciam entre rachaduras e ratos passavam
por corredores esquecidos, Shin treinava em silêncio.
Mas algo estava errado.
A Técnica da Maré Demoníaca exigia continuidade, movimento, elasticidade. Já o
Vazio exigia cancelamento, desaparecimento, ruído zero. Quando Shin fundia os dois, criava um Qi instável que o sistema começava a chamar de “Qi Quebrado”.
『Aviso: Incompatibilidade parcial detectada. Pressão espiritual excedendo os limites
do corpo infantil.』
『Sintomas: Sangramento interno leve. Fadiga neural. Distorção de percepção temporal.』
Mesmo assim, Shin insistia.
Em sua mente, Ayarun ainda se curvava diante da lança cinzenta. A flor azul ainda
pulsava. O símbolo da meia-lua permanecia marcado dentro do peito.
Durante as sessões mais intensas, o tempo parecia parar. Às vezes, Shin pensava estar
meditando por minutos — e acordava horas depois.
Em uma noite particularmente pesada, conseguiu executar com sucesso um movimento de transição entre as duas técnicas:
Fluxo Silencioso — uma adaptação incompleta que permitia ativar a proteção da Maré sem emitir qualquer assinatura espiritual perceptível.
O sistema respondeu:
『Técnica híbrida registrada: Fluxo Silencioso (nível 0 – em desenvolvimento)』
『Afinidade com fusão Vazio/Água: 62%. Nova via de cultivo detectada: Caminho do
Oceano Sombrio.』
Mas o preço foi alto. Sangue nos olhos. Um dos meridianos rachou. E por horas, não
conseguia se mover.
Ao acordar, encontrou uma pequena fruta medicinal diante de si.
Não havia ninguém por perto.
Mas ele sabia.
Saren o observava.
O Apagador de Rastos
Enquanto Shin lutava em silêncio, Saren se movia nas sombras de Rion como um ator
silencioso. Tinha nome falso, credencial oficial da Guilda dos Olhos Cinzentos e uma
postura de burocrata investigativo.
Três investigadores de campo haviam sido enviados para revisar a morte dos
cultivadores mercenários. Dois eram leais à Guilda. O terceiro… não era.
O homem chamava-se Rhan Seoryun. Estava ligado indiretamente à Família Sangvrael e desconfiava que técnicas do culto estivessem ressurgindo.
Saren o observava em silêncio. Nunca o confrontava. Mas constantemente apagava os rastros que Rhan seguia.
Durante a manhã, Rhan investigava a árvore no pátio do orfanato. Saren, à noite,
apagava os resquícios espirituais.
Durante o dia, Rhan recolhia traços de Qi negro nos corredores.
À noite, Saren os substituía por traços de técnicas menores — como se tudo tivesse sido um conflito entre gangues locais.
Em pouco tempo, a investigação oficial foi declarada inconclusiva.
Saren, em seu relatório, disse:
— “Restos de técnicas do submundo, não relacionadas ao Culto. Invasores eliminados
por outra facção desconhecida. Recomenda-se encerrar caso localmente.”
Na calada da noite, queimou o relatório verdadeiro. O que dizia:
— “Técnica híbrida de Vazio e Água detectada. Usuário: criança. Possível herdeiro do Sistema. Proteção necessária.”
A Chave da Lua
Em sua terceira noite após descobrir o símbolo, Shin usou o sistema para analisá-lo.
『Símbolo da Lua Silenciosa: Artefato espiritual da Família Lunaris』
『Função: Chave sensorial. Pode ativar dispositivos lunares selados ou transmitir
memórias espirituais codificadas.』
O sistema permaneceu silencioso por um tempo.
E então, como se ativado por uma combinação específica de Qi, revelou:
『Fragmento de memória registrado. Deseja acessá-lo?』
Shin hesitou.
Sim.
A imagem que surgiu em sua mente era tênue — uma mulher de longos cabelos
brancos, olhos prateados, e uma voz doce como névoa noturna.
— Se um dia vires este símbolo… saiba que nem tudo foi perdido. A Lua observa o
Vazio. E uma criança da noite ainda pode caminhar sob nossa luz.
A imagem sumiu.
Shin não entendeu tudo. Mas compreendeu uma coisa: havia alguém que sabia quem ele
era. E essa pessoa não era inimiga.