— Anthonyyyyy!
A voz da Anna ecoa pela sala, esganiçada e chorosa.
— Por que meu dente não cai?!
Ela tá com o rosto vermelho, os olhos cheios d’água.
— Ele tá doendo muito! A mamãe disse que a fada do dente ia pegar ele quando caísse... mas ele não caiu!
Ela quase soluça.
Parece que o mundo dela vai acabar por causa de um maldito dente de leite.
— Anna, o dente não vai cair sozinho. Tem que puxar ele.
Falo, apertando as bochechas dela.
— Mas vai doer, Anthony...
Ela faz um biquinho. Irritante. Fofo também — mas eu nunca ia admitir isso.
— Não vai doer, bebêz.
— NÃO ME CHAMA DE BEBÊ!!
Ela grita, indignada, cruzando os braços como se fosse uma adulta.
— Tá bom, tá bom.
Levanto as mãos, rindo.
— Vou buscar o fio de dente na cozinha.
Saio correndo.
No caminho, passo pela sala.
Meu pai tá lá.
Como sempre.
O olhar grudado na TV desligada.
Ela não funciona mais desde que ele jogou no chão naquele dia.
Aquele dia em que ele gritou com a mamãe.
Aquele dia que ele quebrou mais do que uma televisão.
Eu não entendo por que ele ainda fica ali.
Olhando pra tela preta.
Talvez ele veja alguma coisa que eu não vejo.
Ou talvez... ele só esteja esperando algo acontecer.
Sigo até a cozinha.
Mamãe tá lá.
Ela era linda.
Mesmo com a cara cansada, mesmo com os olhos tristes às vezes...
Ela sempre parecia luz.
— Mamãe, pode me dar o fio que bota no dente?
Abraço as pernas dela, me enroscando como um gato.
— Pra que você quer fio dental, Thony?
Ela pergunta rindo, com aquela voz quente que parece um cobertor.
— Pra brincar com a Anna.
Respondo com uma risadinha besta, tentando parecer inocente.
— Aaah, com a Anna? Tá bom.
Ela se inclina, pega o fio.
— Só não vão fazer besteira, viu? Já já os pais dela vêm buscar.
— Tá bom.
Ela me dá um beijinho na testa e eu saio correndo, com o coração disparado.
Entro no quarto.
Fecho a porta.
Hora de planejar.
Eu e Anna contra o dente de leite.
E ele não vai sair dessa com vida.
— ESPERA, Anthony!
Ela fala de repente, com um sorrisinho de canto.
— Você também tá com um dente de leite pra tirar, né?
— Simmm, eu tenho...
Faço cara de quem acabou de lembrar.
— Só que seus pais já vêm te buscar. Então temos que fazer logo isso.
Invento uma desculpa. Não queria mexer no meu dente.
Amarro o fio em volta do dente dela e...
PUXO.
Sai tão rápido.
Mas ainda assim, sangra.
Pra alguém que é tão sensível, ela não chora.
Levo ela até o banheiro.
— Sobe no banquinho e vamo lavar essa boca.
Ela é bem pequena.
Não acredito que ela ainda usa banquinho...
(Eu usava até o ano passado, mas isso não vem ao caso.)
Ela lava a boca e...
Prontinho. Novinha em folha.
Lá de fora, escuto o barulho do carro do pai dela.
— Hmmm... seu pai já chegou, Anna.
Digo, meio triste — mas sem querer demonstrar.
— Okaaaay! Já estou indo! Sei que você vai ficar com saudade, mas tudo bem, eu voltoooo quando der!
Ela me olha rindo, cheia de si.
Eu me encolho de vergonha.
E mando ela ir logo.
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Assim que ela vai embora, entro na sala.
Mas meu pai já não tá mais lá.
Corro pro quarto. Me jogo na cama e me escondo.
Eu me escondia porque sabia que ele não gostava de escutar meus passos.
Lá da cozinha, escuto ele discutindo com a mamãe.
Sons de pratos quebrando.
E então...
PAH!
Minha porta abre de repente.
— ANTHONY! Que marca de sangue é essa no banheiro?!
Ele grita. A cara dele... completamente assustadora.
A mão dele tá sangrando.
Eu tremo.
Um sentimento que vive dentro de mim acorda mais uma vez:
Medo.
— Eu... eu estava tirando o dente de leite da Anna...
Sinto o olhar dele me atravessar.
— Então é isso?
Ele vem na minha direção.
Me joga no chão.
— ENTÃO NÃO SUJE A MERDA DA MINHA CASA, ANTHONY!
VOCÊ CANSA A SUA MÃE!
ELA VAI EMBORA POR SUA CAUSA!
VOCÊ DEIXA ELA CANSADA, ANTHONY!
E então...
Ele me chuta na boca.
E por coincidência,
meu dente de leite também voou.