O esconderijo era úmido, feito de concreto bruto e memórias podres. João ainda sentia o cheiro da fumaça da explosão. Não nas roupas — mas na alma. Natasha dormia num colchão improvisado, exausta. Já ele... nem piscava.
As palavras de Elías se repetiam na cabeça dele, como um eco impossível de ignorar.
> “Você foi o único que escolheu ser humano...”
O pingente de Natasha descansava entre seus dedos, mas o punho estava fechado, como se tentasse impedir que o mundo escapasse mais uma vez.
Naquela madrugada, ele não treinou. Não planejou. Ele sentiu.
Fechou os olhos e permitiu que o poder tomasse conta — não como arma, mas como farol. Pela primeira vez, ele não resistiu. E o que veio... foi devastador.
A cidade inteira gritou.
Mas ninguém escutou.
Só ele.
As vozes vinham de diferentes lugares — prisões secretas, clínicas escondidas, abrigos subterrâneos. Eram sussurros, gemidos, memórias distorcidas de homens e mulheres como ele. Criados, moldados, descartados.
E entre elas… uma voz familiar.
> “João… me ouve...”
Era Marina.
Ela estava viva.
Mas não livre.
Ela estava no Setor N, uma instalação escondida abaixo de uma represa desativada no interior. Não havia registros digitais. Só boatos entre antigos membros da CLAUSTRO. Um local onde "os defeituosos" eram levados para nunca mais voltarem.
João não hesitou.
Antes do sol nascer, ele e Natasha estavam numa van velha, cortando a estrada como dois espectros em missão suicida. No porta-malas, estavam os restos do antigo equipamento de Elías — incluindo o marcador de frequência neural, uma engenhoca improvisada capaz de rastrear padrões mentais como o de Marina.
— João... — disse Natasha, enquanto dirigia — você sabe que isso é uma armadilha, né?
— Sim.
— E mesmo assim...?
— Mesmo assim, a verdade não espera. E Marina... nunca esperou por mim. É a minha vez de correr até ela.
Natasha não respondeu. Mas seu silêncio dizia tudo.
—
A estrada até o Setor N era deserta. Ninguém passava por ali há anos. Eles abandonaram o carro a três quilômetros da entrada principal, descendo por um trilho de carga enferrujado. A vegetação cobria quase tudo... exceto as grades de aço marcadas com o símbolo da CLAUSTRO.
João respirou fundo.
A cada passo, ele sentia o poder pulsando de forma diferente. Não era mais raiva. Nem dor. Era… clareza. Uma consciência plena que se estendia além dos sentidos.
— Eles vão saber que estamos aqui — sussurrou Natasha.
— Eu espero que saibam — respondeu ele. — Quero que saibam quem voltou pra buscar o que é seu.
—
Dentro do Setor N, as luzes de emergência começaram a piscar. Alguém do outro lado da base sussurrou:
> “Ele chegou.”
—
E foi assim que começou… a segunda fase da guerra.
Não entre soldados.
Mas entre mentiras... e quem sobreviveu a elas.