Quando se está numa cidade onde até o nome parece piada cósmica, o conforto vira luxo e a sobrevivência, meta.
Escolhi o que parecia ser o único lugar disponível que não exigia documentos, boas intenções ou carteira cheia: Pensão São Tomé, uma construção de madeira tão velha que rangia só de olhar pra ela. No letreiro, faltava um “O”, e isso me pareceu uma espécie de aviso espiritual.
Se encontrava bem próximo a uma comunidade muito humilde da cidade. Um canto esquecido, mal tratado e fedido de Santas Graças. Encarei como um estimulo pra me empenhar mais no caso e tornar minha estadia ali a mais breve possível.
A dona da pensão era uma senhora magra como um palito de fósforo, com sotaque indecifrável e hálito de aguardente. Me entregou a chave do quarto 3 com um sorriso quase humano e ainda se ofereceu para ler minha mão por mais alguns trocados. Deixei para uma próxima oportunidade.
Meu quarto tinha um aroma rústico e indecifrável, a cama confortável como pedra, o chuveiro com uma agua tão fria que provavelmente chegava perto do zero absoluto e uma janela que só abria se você orasse para todos os santos da cidade. Ao menos tinha um vista privilegiada do lixão da cidade.
Passei a noite acordado, ouvindo os gemidos das paredes e os lamentos do encanamento. Aproveitei a insônia para revirar cada detalhe do caso até o momento, tentando montar um quebra-cabeça sem saber quantas peças faltavam — ou se existia uma imagem no final.
Na manhã seguinte, me embriaguei com café queimado e fui até a escola particular Marechal Michel Amado, onde Karen estudava. O prédio da escola era uma monstruosidade bege com colunas falsas e um jardim simétrico de grama plastificada, tentando parecer chique, mas exalando o mesmo charme de um hospital abandonado. Na entrada, uma estátua enorme da Virgem Maria de braços abertos pairava sobre os alunos, como se abençoasse cada boletim medíocre com misericórdia divina. Um brasão dourado com um escudo e capacete de templários adornava a fachada principal, como se aquilo fosse um santo campo de batalha intelectual — quando, na verdade, era só um criadouro de adolescentes entediados com grife.
Parei do outro lado da rua, me escondendo atrás de um jornaleiro que dormia em pé como um cavalo velho. A sirene tocou, e os alunos saíram como formigas que perderam a rainha. Karen apareceu por último, o olhar enterrado no chão.
Quando me viu, seus olhos se arregalaram, e ela caminhou até mim devagar, como se estivesse prestes a levar uma bronca.
— Achei que você tinha desistido — disse, sem muito entusiasmo.
— Eu também — respondi. — Mas, infelizmente, minha conta bancária não tem esse luxo.
Ela deu um sorrisinho fraco. O tipo de sorriso que tenta fingir que não está quebrado por dentro.
— Você tá bem? Seu pescoço...
— Ainda no lugar. Seu pai tem mãos de estivador e paciência de gato faminto. Mas estou firme.
Ela mordeu os lábios desviando o olhar.
— Você ainda vai continuar com isso, mesmo depois do que meu pai fez?
— Já sofri coisa pior. E ganhei menos. — Fiz uma pausa. — Confia em mim, Karen. Eu não vim só pelo dinheiro. Bom... principalmente por ele, sim. Mas agora? Agora tô me sentindo desafiado. Sinto que tem algo mais. Algo que fede a coisa grande.
Ela assentiu. Pela primeira vez, sem parecer que queria sumir do mundo.
Aproveitei a brecha.
— Karen... me fala mais sobre sua mãe. Como ela era, de verdade?
Karen olhou pro chão, mexendo nervosamente nos próprios dedos. Demorou alguns segundos pra responder, como se cada lembrança fosse um passo num campo minado.
— Ela era... incrível — disse, quase num sussurro. — Sabe aquele tipo de pessoa que parece boa demais pra esse mundo?
— Não — respondi —, mas prossiga.
— Sempre foi muito carinhosa, mas não sufocava a gente. Confiava... até demais, eu acho. Nunca foi dessas que colocava de castigo ou gritava. Quando a gente fazia besteira, ela só olhava com aquela cara triste... e pronto. Já era pior do que qualquer bronca.
— Liberal? — perguntei, tentando entender melhor.
— É... tipo isso — ela respondeu. Acreditava que a gente tinha que viver experiências, aprender errando. Mas mesmo assim, cuidava da gente com tanto amor que às vezes doía. Fazia bolo quando a gente tava triste. Inventava jogos bizarros só pra ver a gente sorrir. Cantava alto quando lavava a louça. Era... viva. Alegre. Como se tivesse uma alma jovem.
— Seu pai não parece ter esse mesmo tipo de pensamento. Eles brigavam?
— Às vezes. Não muito. Sei que não parece agora, mas meu pai nunca gostou de brigas e discussões. Na maioria das vezes, quando discutiam, era sobre trabalho ou coisa de igreja.
— Ela era religiosa, também? — perguntei.
— Muito. Mas não do tipo fanática, nem como meu pai. Ela acreditava mais na bondade do que em regras. Dizia que Deus estava nas pequenas coisas: no cheiro do mato, no abraço, no perdão. Ia aos cultos na igreja do meu pai quando podia, mas orava todo dia... do jeito dela.
— Você me disse que ela trabalhava com robótica. Devia ser bem inteligente.
— Muito. Sabia de tudo um pouco. Lia muito, escrevia também. Tinha uns cadernos cheios de anotações... frases, pensamentos, sonhos. Às vezes parecia que ela via o mundo de um jeito que ninguém mais via.
Karen sorriu sozinha, perdida em lembranças. Eu anotei mentalmente cada detalhe. A imagem de Miriam Frontez começava a ganhar contornos mais nítidos. E quanto mais eu a conhecia, mais absurda parecia a ideia de que uma mulher assim tivesse simplesmente explodido em chamas.
Algo não batia.
— Ela tinha muitos amigos?
— Alguns, do trabalho. Já foram em casa algumas vezes.
— Nomes?
Karen apertou os olhos enquanto olhava o chão e começou a roer a unha do indicador, se esforçando para buscar os nomes em lembranças.
— Tinha a Marta, a Joisse, a senhora Katia, o senhor James... acho que só.
— Não são muitos. E inimigos?
— Inimigos? — Karen me olhou levantando uma das sobrancelhas. — Acho que nenhum... pelo menos não que eu saiba.
Então me pus em silêncio, organizei as informações na minha mente, o que levou alguns segundos. Com tudo em ordem, saí do meu escritório imaginário e voltei para a realidade.
— Obrigado, Karen — falei, com mais seriedade do que costumava usar. — Você me ajudou muito.
Ela só assentiu.
Avistei o carro chique que me trouxe à cidade estacionando do outro lado da rua, em frente à escola. O chofer engomado esticava seu pescoço pra fora como uma doninha caçando.
— É melhor você ir — disse, apontando para o carrão.
Karen se virou e também avistou o veículo. Então se voltou pra mim sem dizer nada. Acenou de forma discreta com a mão e correu em direção ao carro.
Continuei parado, respirei fundo e me tranquei de volta no meu escritório imaginário para decidir quais seriam meus próximos passos. Levou alguns minutos, mas quando finalmente decidi, ajeitei o casaco, dei dois tapas no meu black, avancei com confiança — e pisei na merda de um maldito cachorro.