Os 4 Cavaleiros

Não sou exatamente o tipo de cara que perde tempo em redes sociais, a não ser quando elas prometem algo mais útil que fotos de café e frases motivacionais. No caso de Miriam Frontez, suas postagens eram uma espécie de diário codificado. Frases soltas sobre tecnologia, fé e uma obsessão por inteligência artificial que fazia parecer que ela conversava mais com circuitos do que com gente.

“Até as máquinas compreendem melhor o perdão do que alguns humanos”, dizia uma publicação de duas semanas antes da morte. Em outra, um vídeo com a legenda: “A alma humana não é programável... mas pode ser corrompida.” Bonito. Críptico. E totalmente o tipo de coisa que alguém prestes a morrer em chamas deixaria para trás como rastro.

Terminada minha investigação virtual, levantei-me da cama dura do quarto, ajeitei meu black, penteei a barbicha, apanhei o casaco de sempre e me mandei para a empresa de robótica onde Miriam trabalhava: a Robotics Inc.

O prédio era um bloco de concreto com janelas espelhadas, no meio de um terreno que mais parecia um laboratório perdido num filme B de ficção científica. Fiquei do lado de fora, esperando a saída dos funcionários, como um caçador aguardando a presa. Mas, nesse caso, a presa usava crachá e provavelmente tinha mestrado.

A primeira a sair foi Marta. Aproximou-se arrastando os pés, com olheiras do tamanho do abismo existencial de Kafka. Tremia ao acender um cigarro, mesmo com os dedos gelados pelo vento.

— Marta? — perguntei.

Ela olhou para mim como quem encara um espantalho num pesadelo.

— Quem quer saber?

— Detetive Dude. Investigando a morte da sua colega Miriam. Tem um minuto?

Ela assentiu, os olhos marejados.

— Ainda parece mentira — sussurrou. — Ela era... sabe quando alguém é bom demais pro ambiente em que vive? Era ela.

— É, já ouvi isso antes. Mas me fale sobre dentro da empresa. Alguma coisa incomum nos últimos dias?

— Ela andava mais inquieta. Às vezes parecia preocupada, outras vezes surgia agitada até demais, mas ninguém ousava perguntar. Miriam era reservada, mas não do tipo que se esconde... Era mais como... alguém que pensa em voz baixa.

— E você? Onde estava na noite em que ela morreu?

Marta hesitou. Tragou fundo o cigarro.

— Eu... estava em casa. Sozinha. Tinha bebido um pouco demais. Estava tentando dormir quando vi as notícias no grupo da empresa.

— Alguém pode confirmar isso?

— Talvez a vizinha de baixo. Costuma reclamar do som alto das músicas que escuto quando bebo. Mas... não tenho certeza se ela estava em casa.

Anotei aquilo. Não era exatamente um álibi à prova de balas, mas também não era uma confissão. Só um rascunho torto de solidão.

— Alguma desavença entre você e Miriam?

— Claro que não! Eu admirava ela. Na verdade... acho que eu queria ser como ela. Miriam era o tipo de pessoa que, às vezes... era difícil não sentir inveja.

A sinceridade da frase me pegou desprevenido. Mas inveja não é crime. Até onde eu sabia.

— E onde estava quando Sina Bastien morreu?

— A outra moça que também pegou fogo? Eu estava aqui, trabalhando. Todos me viram.

— Ok... — anotei.

A segunda foi Joisse. Cabelo preto azulado, maquiagem pesada, camiseta com uma caveira segurando um teclado. Parecia saída direto de um funeral steampunk. E andava com a confiança de quem já tinha chorado tudo que tinha pra chorar.

— Detetive? — disse antes que eu abrisse a boca. — Tava esperando por você.

— Ah, é? Costuma ter premonições?

— Não. Só sabia que alguém ia aparecer. A morte da Miriam... não dá pra engolir aquilo tão fácil.

— Alguma coisa específica que te fez desconfiar?

Ela cruzou os braços, olhando para o céu como quem vasculha as nuvens em busca de respostas.

— Tem algo que acho relevante. Comentei com a polícia quando estavam investigando, mas os incompetentes acabaram descartando.

Inclinei o corpo para frente como um cachorro que escuta barulho de salsicha na cozinha.

— Manda.

— Uma vez — já faz um tempo — vi a Miriam discutindo com aquela mulher... a que também pegou fogo.

Eu congelei. Aquilo era uma bomba.

— Sina? Sina Bastien?

— É. Foi perto de um parque próximo daqui. Era final de tarde. Elas falavam baixo, mas parecia intenso. Miriam balançava os braços, apontava o dedo. A outra mulher, essa Sina, parecia bem tensa.

Senti o sangue bater mais rápido nas têmporas. Tirei meu caderninho do bolso tão rápido que quase o derrubei.

— Você tem certeza?

— Tenho. Na hora, não quis me meter. Achei que era alguma amiga de Miriam. Depois disso, essa Sina morreu... e depois a Miriam... É no mínimo suspeito, mas a polícia não pareceu se importar quando falei com eles.

— O que também é suspeito.

— Porcos sendo porcos, detetive.

Um breve riso escapou da minha boca.

— E você tem alguma noção do que elas poderiam estar falando? — me aproximei de Joisse sem perceber. — Ouviu alguma palavra sequer?

— Não... — Joisse respondeu, se afastando enquanto me olhava com certa estranheza. Acho que deixei o entusiasmo me levar.

— Perdão — me recompus. — Você acabou de me dar uma informação bastante preciosa.

— Imagino, mas elas estavam realmente falando baixo. Sussurros altos. Dava pra ouvir, mas não entender, sabe? Como se tomassem cuidado para que ninguém as ouvisse. Achei estranho.

— Entendo. — anotei. — Você contou isso pra alguém além da polícia?

— Não. Fiquei com medo de parecer paranoia. Mas agora... sei lá.

— E você? Onde estava quando Miriam morreu?

— Em um show. Banda gótica local. Tenho o ingresso, a pulseira e até umas fotos. Posso te mostrar.

Ela puxou o celular com agilidade e me mostrou tudo: horário, local, e até um vídeo em que gritava letras em latim desafinadas.

— Álibi decente. Mas e entre você e a Miriam? Alguma tensão?

— Ela me irritava às vezes. Sempre tão... correta. Toda alegre e extrovertida. Eu achava que ela se escondia atrás de uma máscara. Mas era só a Miriam sendo a Miriam... No fundo, eu a respeitava. Ela era autêntica, mesmo sendo um enigma.

— E quanto à Sina Bastien?

— Não a conhecia. Só a vi naquela vez com a Miriam e depois nas notícias. Eu estava doente quando ela morreu, uma virose.

— Alguém que possa provar?

— Meu irmão não saiu do meu lado e minha mãe sempre ia me ver. Tenho uma cópia do atestado médico também.

— Acho que basta pra mim.

Joisse sorriu de lado, disse que precisava ir e se virou. Deu três passos em direção ao prédio. Então parou. Voltou-se para mim novamente e apontou o dedo.

— Eu não sei por quê, mas gostei de você. Vai descobrir o que aconteceu, não vai?

— Nem que seja preciso eu ir até o inferno.

Ela sorriu.

— Inferno? Então toma cuidado pra não se queimar. — disse, se virando novamente.

Eu ri. Depois fiquei pensando se era apenas um comentário engraçadinho ou uma ameaça... cabeça de detetive.

A terceira a sair foi Katia. Vestia-se como quem ia à missa, mas com o brilho de quem lia Nietzsche escondido no hinário. Altiva, mas acolhedora. Se Miriam teve uma confidente, apostaria meus últimos centavos nela.

— Detetive Dude, imagino.

— A fama me precede? — tentei o charme irônico.

— Joisse me avisou. E você tem cara de quem já fez perguntas demais pra freiras e poucos amigos entre padres.

— Perfeita leitura. Podemos conversar?

Caminhamos até uma sombra discreta, e Katia cruzou os braços com elegância.

— Miriam era mais do que brilhante. Ela compreendia as pessoas... mesmo quando elas não se compreendiam. Era isso que mais me encantava nela. E assustava, também.

— Assustava?

— Porque quem enxerga fundo demais normalmente acaba vendo coisas que não devia.

Anotei aquela frase. Me pareceu relevante.

— Quando se olha demais para o abismo, o abismo te olha de volta, certo? — comentei, tentando parecer inteligente.

— Exatamente. — Katia concordou com um pequeno riso.

— A senhora sabe se ela tinha inimigos? Talvez um mal-entendido com alguém?

— Acho pouco provável. Miriam era extremamente amigável e carismática, se dava bem com todos. Mas ela andava mais agitada, um pouco dispersa e bem mais religiosa também. Falava bastante de pecado, castigo e perdão. Chegou a me pedir conselhos para “aumentar mais a fé" e se aproximar mais de Deus. No começo achei bacana, mas depois virou uma espécie de obsessão. Já estava começando a parecer paranoia. Mas... depois da Sina, ninguém mais achava graça. Aquilo pareceu mexer bastante com Miriam também, mesmo ela negando.

— Como assim?

— Ela ficou... estranha. Parecia que tinha se desconectado do mundo. Uma vez, peguei ela pesquisando sobre catolicismo e bruxas sendo queimadas com água benta. Quando eu tentava conversar com ela pra entender, ela desconversava.

— Interessante... — anotei. — Espero que não se ofenda, mas consegue me dizer onde estava na noite em que Miriam morreu?

— Reunião de oração. Começou às sete, terminou quase meia-noite. Vinte e três pessoas podem confirmar.

— Uau. Álibi santo.

— Às vezes, as respostas mais simples são as mais ignoradas, detetive.

— E quanto à manhã em que Sina Bastien morreu, onde estava?

— Era uma segunda. Estava bem aqui, trabalhando.

— Certo. — fiz mais algumas anotações e liberei a mulher.

Por fim, surgiu James. O tipo de cara que parece ter nascido de terno. Rosto pálido, olhos fundos, passos firmes. Parecia ver o mundo como um problema técnico a ser resolvido.

— James, certo? — questionei.

— Certo. O que quer saber? — ele perguntou sem rodeios.

— Miriam Frontez. Alguma coisa incomum?

— Ela era a mente mais criativa que já passou por aqui. Tinha ideias brilhantes. Confesso que boa parte do que sei é graças a ela. Tínhamos uma relação de “aluno e professora". Nunca foi uma mulher de fazer drama. Mas, nas últimas semanas, parecia... distante. Cautelosa. Como se estivesse esperando alguma coisa acontecer.

— Você sabe o quê?

— Não. Mas... — hesitou.

— Mas?

— Miriam era muito dedicada e pontual. Mas, no dia em que aquela outra mulher, Sina, morreu, ela chegou atrasada. Estava meio avoada e um pouco agitada também.

Arqueei as sobrancelhas.

— Mesmo? Saberia dizer o quão atrasada ela chegou?

— Treze minutos. Foi o suficiente para que notassem.

Uma nova pulga atrás da minha orelha.

— Ela justificou esse atraso?

— Não, apenas se desculpou com o diretor. Eu também não questionei. Todos sabem suas responsabilidades e têm seus próprios problemas — e suas próprias vidas — para cuidar.

Me soou ofensivo, mas ignorei e prossegui.

— E você? Onde estava no momento da morte?

— De Miriam? Aqui. No laboratório a noite inteira. Câmeras internas gravaram tudo. Posso pedir ao setor de segurança.

— E na de Sina?

— Mesma coisa.

— Dois turnos?

— Estou trabalhando num projeto importante. Tenho dedicado todo meu tempo nisso. Falando nisso, preciso ir.

James saiu andando apressado. Não acreditava no sobrenatural. Mas mesmo ele parecia perturbado. E, se aquele cara estava desconfortável... algo fora mesmo do esperado tinha acontecido.

Anotei tudo e me afastei. Aqueles quatro funcionários, tão diferentes, desenhavam uma mesma figura: Miriam não era só inteligente — era excepcional. Visionária. E, aparentemente, estava metida em algo maior do que seus amigos podiam entender.

E agora... essa história de uma discussão com Sina.

As peças estavam se encaixando — ou se preparando para explodir na minha cara. De qualquer forma, era hora de descobrir o que, diabos, Sina Bastien fazia discutindo com a próxima vítima.

E por que seu nome começava a me soar tão familiar.