A tempestade caiu como um véu sobre a vila de Tenka.
O céu rugia, e trovões cortavam a noite como lanças de um deus irritado. Ayame fechava as janelas com pressa, chamando Mio para ficar perto da lareira. Hayato estava fora, ajudando a patrulha local a reforçar as defesas — havia rumores de bandidos nas redondezas.
Mas Hiro… Hiro estava em algum lugar da casa.
E essa era a preocupação.
Na escuridão do corredor, Hiro avançava com os pés descalços, os olhos arregalados, os músculos tensos. Estava tremendo, mas não de medo — de ódio. Cada raio que cortava o céu fazia seus ombros se tremerem, como se esperasse flechas, ou uma emboscada.
— Cercaram o lado sul… recuem... recuem, porra!
Ele sussurrava, rouco, mas com voz de comando. Seus olhos não viam o corredor. Viam corpos. Viam fogo. Viam a lama de Valkrim tingida de vermelho e a cabeça de um amigo nos pés.
—Maldição, eles estão usando Rakshas com escudos... recuar... recuar!!
O trovão soou como o estouro de um feitiço de artilharia. E Hiro, em um segundo, se lançou em direção à sala, derrubando uma estante com violência.
Ayame se assustou.
Mio gritou.
— Hiro! HIRO!
Mas ele não ouvia.
Ele não via a mãe.
Ele via apenas formas à sombra do fogo. Inimigos. Demônios. Um campo de batalha.
Ele se lançou com um grito gutural — e Ayame, em desespero, abraçou Mio e rolou com ela para trás, protegendo-a com o corpo.
— Hiro, somos nós!! ACORDA, PELO AMOR DOS DEUSES!
Por um momento, só o som da chuva preenchia a sala.
E então… Hiro parou.
Ofegante.
Suando frio.
Os olhos voltando aos poucos. Primeiro, confusão. Depois, horror. E por fim, um silêncio devastador.
— …Mio? — ele murmurou, ao ver a irmã chorando, agarrada à mãe.
Ayame segurou a filha com força, os olhos cheios de lágrimas.
Ela o encarou como se não reconhecesse mais aquele garoto.
— Sai de perto dela, disse, num fio de voz. Agora.
Na manhã seguinte, Hiro não tomou café. Nem tentou conversar.
Subiu direto para o sótão e trancou a porta.
Lá dentro, socou a parede até os nós dos dedos sangrarem. Gritou contra nada. Tentou apagar da cabeça os gritos de Mio, o medo nos olhos da mãe, o sentimento de ser uma arma sem controle.
Do lado de fora, Hayato chegou.
Viu a sala destruída, os olhos vermelhos de Ayame, o silêncio pesado.
— O que ele fez? — perguntou.
Ela apenas balançou a cabeça. Depois de um longo suspiro, respondeu:
— Ele não é mais nosso filho, Hayato. É alguém que passou por um inferno que não consigo imaginar.
Hayato não respondeu.
Mas à noite, ele subiu até o sótão.
Bateu na porta.
E, pela primeira vez, falou sem medo. Sem autoridade. Só como um pai.
— Se você ainda é o Hiro… me diga. Porque eu não sei mais quem está aí dentro.
Do outro lado da madeira, silêncio.
Mas então, a voz veio. Baixa. Fraca. Quebrada.
— Eu não sei também.
E assim, naquela casa partida, as rachaduras cresceram.
Mas em meio a elas… ainda havia esperança de reconstruir.
Ou de se perder de vez.