Capítulo 14 – Entre Estilhaços

O clima em casa havia mudado.

O silêncio que antes era confortável agora era denso, como uma névoa espessa que sufocava os cômodos. Ayame falava pouco. Mio evitava olhar Hiro nos olhos. E Hayato… Hayato observava tudo, calado, como um homem que espera a próxima tragédia.

Hiro sabia que era ele o estopim.

Sabia que, se não fizesse algo, aquela família — o que restava dela — iria se despedaçar como o mundo que ele conhecera no futuro.

Naquela manhã, ele fez mingau.

Simples. Com frutas secas e mel, como sua mãe fazia quando eles estavam doentes.

Deixou a tigela na frente de Ayame, outra para Mio, e sentou em silêncio, sem tentar forçar conversa. Apenas comeu.

Ayame olhou a tigela por longos segundos, desconfiada, mas cedeu. Comeu em silêncio.

Mio o observava de canto de olho.

— Você… sabe cozinhar? — perguntou, baixinho.

Hiro forçou um meio sorriso. — Tive bons professores.

Foi uma resposta vaga. Mas verdadeira. Ele se lembrou de Saori, reclamando enquanto ele queimava arroz pela quinta vez no acampamento de evacuação.

“Cozinhar é magia também, idiota,” ela dizia.

"Transformar coisas mortas em algo que aquece o peito. Aprende isso.”

Mais tarde, Hiro apareceu na sala com um caderno velho. Sentou ao lado de Mio no chão, onde ela desenhava.

— Posso? — perguntou.

Ela hesitou, mas empurrou os lápis para ele. Ainda não confiava. Mas queria.

Hiro pegou um lápis azul e desenhou uma borboleta torta.

Mio riu, sem querer.

— Tá horrível.

— É o máximo que consigo sem magia, ele disse, e pela primeira vez, os dois riram juntos.

Ayame, na cozinha, ouviu. E chorou em silêncio.

Ao entardecer, com o céu pintado de laranja, Hiro chamou os pais para o quintal.

— Tem uma coisa que preciso mostrar.

Ayame e Hayato o seguiram em silêncio, ainda tensos. A última vez que ele “precisou mostrar algo”, Ayame quase perdeu a filha.

Hiro se ajoelhou e colocou a mão no chão. Inspirou fundo, sentindo a mana circular por seu corpo — suave, densa, controlada.

Com um gesto fluido, uma pequena flor de pedra brotou do solo. Cristalina. Perfeita. Rodeada por uma espiral sutil de vento que a fazia girar levemente.

Ayame levou a mão à boca, sem palavras.

Hayato arregalou os olhos. — Isso é… magia elemental?

— É.

— Como…? Você é plebeu. Ninguém da nossa linhagem… isso é impossível.

— Talvez.

Hiro se levantou.

— Mas aconteceu. Eu treinei. Muito.

— Treinou com quem? — Hayato pressionou, desconfiado.

— Comigo mesmo.

Pausa.

— Eu errei muito, mas aprendi a sobreviver. É o que sei fazer.

Mio observava da varanda, com os olhos brilhando. Ela sabia que o irmão escondia algo — mas era um segredo que não a assustava.

Ayame se aproximou, hesitante, tocando a flor de pedra.

— Você podia ter dito antes.

— Eu não sabia se vocês estavam prontos.

— E você estava?

Hiro olhou para ela com um peso nos olhos que nenhuma criança deveria carregar.

— Nunca estive.

Naquela noite, antes de dormir, ele se sentou com Mio.

— Me desculpa por antes. Eu… vi coisas ruins. E às vezes elas voltam quando eu não quero.

Ela o abraçou, pequena e frágil, mas firme.

— Você ainda é meu irmão?

Hiro fechou os olhos, com um sorriso fingido.

— Sempre.

E pela primeira vez em semanas, Ayame deixou a porta do quarto entreaberta.

Ela não disse nada.

Mas foi o suficiente.

Porque para quem já perdeu tudo uma vez… um pouco de fé é mais valioso que qualquer magia.