O clima em casa havia mudado.
O silêncio que antes era confortável agora era denso, como uma névoa espessa que sufocava os cômodos. Ayame falava pouco. Mio evitava olhar Hiro nos olhos. E Hayato… Hayato observava tudo, calado, como um homem que espera a próxima tragédia.
Hiro sabia que era ele o estopim.
Sabia que, se não fizesse algo, aquela família — o que restava dela — iria se despedaçar como o mundo que ele conhecera no futuro.
Naquela manhã, ele fez mingau.
Simples. Com frutas secas e mel, como sua mãe fazia quando eles estavam doentes.
Deixou a tigela na frente de Ayame, outra para Mio, e sentou em silêncio, sem tentar forçar conversa. Apenas comeu.
Ayame olhou a tigela por longos segundos, desconfiada, mas cedeu. Comeu em silêncio.
Mio o observava de canto de olho.
— Você… sabe cozinhar? — perguntou, baixinho.
Hiro forçou um meio sorriso. — Tive bons professores.
Foi uma resposta vaga. Mas verdadeira. Ele se lembrou de Saori, reclamando enquanto ele queimava arroz pela quinta vez no acampamento de evacuação.
“Cozinhar é magia também, idiota,” ela dizia.
"Transformar coisas mortas em algo que aquece o peito. Aprende isso.”
Mais tarde, Hiro apareceu na sala com um caderno velho. Sentou ao lado de Mio no chão, onde ela desenhava.
— Posso? — perguntou.
Ela hesitou, mas empurrou os lápis para ele. Ainda não confiava. Mas queria.
Hiro pegou um lápis azul e desenhou uma borboleta torta.
Mio riu, sem querer.
— Tá horrível.
— É o máximo que consigo sem magia, ele disse, e pela primeira vez, os dois riram juntos.
Ayame, na cozinha, ouviu. E chorou em silêncio.
Ao entardecer, com o céu pintado de laranja, Hiro chamou os pais para o quintal.
— Tem uma coisa que preciso mostrar.
Ayame e Hayato o seguiram em silêncio, ainda tensos. A última vez que ele “precisou mostrar algo”, Ayame quase perdeu a filha.
Hiro se ajoelhou e colocou a mão no chão. Inspirou fundo, sentindo a mana circular por seu corpo — suave, densa, controlada.
Com um gesto fluido, uma pequena flor de pedra brotou do solo. Cristalina. Perfeita. Rodeada por uma espiral sutil de vento que a fazia girar levemente.
Ayame levou a mão à boca, sem palavras.
Hayato arregalou os olhos. — Isso é… magia elemental?
— É.
— Como…? Você é plebeu. Ninguém da nossa linhagem… isso é impossível.
— Talvez.
Hiro se levantou.
— Mas aconteceu. Eu treinei. Muito.
— Treinou com quem? — Hayato pressionou, desconfiado.
— Comigo mesmo.
Pausa.
— Eu errei muito, mas aprendi a sobreviver. É o que sei fazer.
Mio observava da varanda, com os olhos brilhando. Ela sabia que o irmão escondia algo — mas era um segredo que não a assustava.
Ayame se aproximou, hesitante, tocando a flor de pedra.
— Você podia ter dito antes.
— Eu não sabia se vocês estavam prontos.
— E você estava?
Hiro olhou para ela com um peso nos olhos que nenhuma criança deveria carregar.
— Nunca estive.
Naquela noite, antes de dormir, ele se sentou com Mio.
— Me desculpa por antes. Eu… vi coisas ruins. E às vezes elas voltam quando eu não quero.
Ela o abraçou, pequena e frágil, mas firme.
— Você ainda é meu irmão?
Hiro fechou os olhos, com um sorriso fingido.
— Sempre.
E pela primeira vez em semanas, Ayame deixou a porta do quarto entreaberta.
Ela não disse nada.
Mas foi o suficiente.
Porque para quem já perdeu tudo uma vez… um pouco de fé é mais valioso que qualquer magia.