Meu nome continua sendo Luna
Vasconcellos, embora talvez o mundo queira me chamar de “a imitadora misteriosa” depois de hoje. Mas antes disso: nunca imaginei que um teatro pudesse ser tão grandioso. Nem que eu chegaria tão perto de encarar meu próprio reflexo — cara a cara.
Saí de casa antes do sol nascer, com o coração em turbilhão. Vesti minha jaqueta preta de couro surrado por cima do vestido azul desbotado, prendi o violão na mochila e segurei firme o ingresso amassado: Teatro São Valentim, sessão das 20h. Cada passo até a rodoviária foi um compasso de expectativa: o coração batia na frequência de um solo de guitarra.
Às 18h, sentei-me no banco frio do ônibus lotado. Gente voltava do trabalho, falava alto no telefone, nem imaginava que a passageira do fundo carregava o mesmo rosto que uma estrela de revista. O motor roncava, e eu ouvia o vento bater na janela como aplausos imaginários me saudando.
Quando desci, o teatro ergueu-se imponente diante de mim: fachada clássica, colunas brancas, letreiro em neon anunciando “Melody Vasconcellos”. O peito aperto num misto de medo e fascínio. Respirei fundo.
— Você consegue — eu sussurrei para mim mesma — hoje é o começo da verdade.
Na bilheteria, entreguei o papel amassado. O atendente me olhou de soslaio, mas devolveu com um “boa noite”. O corredor interno era um túnel de tapetes vermelhos e luzes baixas. Cada passo ecoava. Senti o frio na espinha quando abri a porta para a plateia.
A sala de espetáculos explodiu em luzes coloridas. O palco brilhava com holofotes dourados. O público era elegante: ternos, vestidos de gala, celulares apontados para o palco como pequenas lanternas. Procurei um lugar discreto no canto, sentei-me num assento de veludo e apoiei o violão no colo — não que fosse usá-lo ali, mas me trazia coragem.
O relógio na parede parou de fazer barulho quando as luzes se apagaram de repente. Um silêncio elétrico percorreu a multidão. Um único foco iluminou o centro do palco, e então ela surgiu: Melody Vasconcellos. O mesmo rosto dos meus sonhos e pesadelos. Ela usava um vestido longo prateado, o cabelo solto sobre os ombros, e segurava o microfone com delicadeza.
O coração disparou. Eu mal conseguia respirar. Cada acorde de “Lua de Papel” arrancava suspiros da plateia. A voz dela — minha voz? — flutuava macia, como pena ao vento. Vi seus olhos fechados, os lábios recortando cada sílaba, o corpo leve no compasso da melodia. A cena parecia um feitiço.
Fechei as mãos, como se quisesse capturar aquele momento. As lágrimas ameaçaram escapar, mas me contive. Se eu chorasse, alertaria todo mundo de que estava ali por um motivo além de fanatismo.
Quando o último acorde se esvaiu, a plateia explodiu em aplausos. Palmas carregadas de entusiasmo, assobios, gritos de “Melody! Melody!”. Pendurada no teto, uma rede de luzes cintilava como vaga-lumes gigantes. Ela curvou-se, agradeceu com um sorriso suave e saiu de cena.
Meu estômago revirou. As cortinas se fecharam, mas eu precisava mais. Permaneci sentada, aguardando as luzes voltarem, com a mente ensurdecedora. O mundo à minha volta se tornara neblina vermelha de emoção.
De repente, a porta lateral se abriu sem cerimônia. Um segurança alto, terno preto, olhar rígido, empurrou discretamente alguns curiosos e fez sinal para que eu me levantasse.
— Você… Luna Vasconcellos? — a voz dele soou grave.
Meu nome saiu da boca dele com autoridade. Meu corpo gelou. Balancei a cabeça, sem entender.
— Sou eu — respondi, com a voz saindo trêmula — O… o senhor precisa de mim por quê?
Ele fez um aceno para que eu o seguisse pelos bastidores. Cada passo parecia um trote de cavalo no corredor de camarins. O ar ficou mais abafado, o cheiro de maquiagem e perfume misturou-se ao frio do backstage.
Ao virar a última esquina, encontrei um espelho grande, luzes ao redor, e um camarim vazio — exceto por um computador sobre a penteadeira. Atrás dele, um reflexo surgiu. Não era só o meu rosto: era o nosso — Luna e Melody, refletidas no mesmo vidro.
Ele me empurrou para frente:
— Ela quer falar com você.
O sangue gelou. O segurança me deixou ali, de costas para a porta, enquanto a cortina de veludo se abriu. Lá dentro, Melody apareceu. Os olhos dela estavam arregalados, inexplicavelmente feridos.
— Você… — ela engoliu em seco, apoiou a mão na cintura — Você sabia que eu existia?
Senti minhas pernas fraquejarem. Cruzei os braços para conter o violão e me encorajei:
— Eu vi você na TV ontem. E sou igual a você.
O silêncio caiu como um manto pesado. Ela me encarou, surpresa e medo misturados.
— Eu… não sei como dizer isso. Mas… eu sou você. E você é… eu.
Minhas emoções se embaralharam. Tinha raiva, curiosidade, esperança e dor tudo junto. Passei a mão no rosto como se quisesse sentir quem eu era de verdade.
— Por que ninguém me falou sobre nós? — perguntei, a voz embargada.
Ela deu um passo para trás, apoiou-se numa cadeira, balançou os pés:
— Meu pai… ele temia que a verdade destruisse nosso mundo. Você foi… escondida. Eu fui… criada.
Vi sua mão tremer levemente. Dei um passo hesitante:
— O que aconteceu aos 0:15 de nossas vidas? — perguntei, apontando para o relógio do camarim. — O que nos separou?
Os olhos dela brilharam em lágrimas. Ela baixou a cabeça e murmurou:
— Eu prometo que vou contar tudo. Mas… primeiro, preciso de você do meu lado.
Aquele instante durou uma eternidade. O mundo continuou lá fora: risadas, aplausos ecoando pelo palco, luzes apagando e acendendo. Mas, atrás daquela cortina, éramos duas garotas, unidas por um destino que finalmente decidira nos apresentar.
— Eu quero saber quem fui — disse, devagar, o coração explodindo de dor e alívio.
Ela estendeu a mão, e eu a segurei. Senti a pele macia, o pulso fraco, batendo no mesmo ritmo que o meu.
— Então, Luna… seja bem-vinda à minha vida — ela sussurrou.
E foi assim que nossos espelhos finalmente se encontraram, num camarim de bastidores, sob holofotes que iluminavam não só Melody Vasconcellos, mas também a filha que o mundo nunca soube que existia.