EPISÓDIO 3 — A VIDA TROCADA
Narrado por Luna Vasconcellos
Acordei com a luz fraca do amanhecer invadindo o camarim improvisado onde Melody me deixara passar a noite. Ao meu lado, o vestido prateado dela e um par de sapatos de salto guardados num canto. A voz da soprano ecoava na minha mente: “Seja bem-vinda à minha vida.” Agora, a vida dela era a minha — por tempo limitado — e a minha vida se tornou uma tempestade de sentimentos.
Vesti o uniforme impecável da escola Elite Harmonia: blazer branco, gravata azul-marinho, saia xadrez e sapatos lustrosos. Nunca havia usado nada tão perfeito. O tecido apertava meu corpo de um jeito estranho, mas reconstruía minha postura. Lá fora, os empregados ajeitavam o jardim e escoltavam alunos; eu me senti um peixe fora d’água.
Passei os dedos nos meus cabelos, dividindo-os ao meio como Melody sempre fazia, e me olhei no espelho do corredor. Um reflexo me devolveu o rosto de princesa pop, mas meus olhos denunciavam insegurança. Inspirei fundo:
— Você consegue, Luna — sussurrei. — É só interpretar.
No pátio, fui recebida por olhares atentos. Alguns cochichos, sussurros: “É a novata?”, “Gostei do cabelo dela”. Um garoto de terno cinza se aproximou, me deu um tapinha no ombro e apresentou-se:
— Oi, sou Gabriel Santos. Você é a Melody, certo? Eu… me formei em música clássica na Europa, mas aqui sou só mais um bolsista. Seja bem-vinda!
Sorri nervosa, tentando imitar o jeito gentil que vira em vídeos:
— Obrigada, Gabriel. Eu… é um prazer estar aqui.
Ele desviou o olhar, ruborizado. O tipo perfeito de amigo que Melody tinha. Eu aguentei até ouvir seu grupo de colegas chamar: “Vamos, Vitor chegou!”
Então ele apareceu: Vitor Castro, namorado oficial de Melody. Alto, sorriso confiante, terno alinhado. Seus olhos me varreram de cima a baixo como quem faz check-in em um voo de primeira classe. Meu coração disparou. Vitor se aproximou, beijou a bochecha de “Melody” e perguntou:
— Tudo bem, meu amor? Dormiu bem no camarim?
— Durmo melhor em turnês — respondi sem pensar, a voz saindo rouca.
Vitor sorriu satisfeito, me ofereceu o braço e me guiou até a sala de estudos, onde uma placa dizia “Bem-vinda, Melody Vasconcellos”. Cada passo ecoava no piso de mármore, e meu reflexo atravessava lustres e colunas como se eu fosse parte de um filme antigo.
Na primeira aula, fingir era um desafio. A professora falou sobre literatura clássica e me pediu para ler um parágrafo em voz alta. Tremi ao erguer a vista, mas coloquei o tom emotivo que tinha ouvido nos vídeos de entrevistas da Melody. A classe murmurou elogios: “Ela lê muito bem”. O alívio me aqueceu, mas só por um segundo, pois a imitação precisava ser perfeita.
Entre intervalos, Gilbert, o amigo engraçado, perguntou sobre meu gosto musical. Menti:
— Adoro desde pop até jazz. Mas… acho que meu coração bate forte por canções autorais, sabe?
Ele assentiu, satisfeito. Mas em cada conversa, eu sentia o peso do erro: cada palavra era um passo em falso numa corda bamba.
Ao meio-dia, o refeitório parecia um salão de gala. Alunos famintos alinhavam-se para disputar o buffet. Vi “Melody” entrar com Beatriz, a melhor amiga da vida real — a única que conhecia meus segredos. Beatriz me reconheceu na hora:
— Melody! Você está ótima! Mas… parece um pouco… diferente hoje.
Forçei um sorriso:
— É só nervosismo de estréia!
Ela assentiu, mas o olhar preocupado denunciou que a fachada tremia.
Enquanto isso, senti um braço tocar meu ombro. Era Gabriel:
— Posso me sentar com você? É que… adoro estudar música com alguém que entende o mesmo idioma, entende?
Convidei com a cabeça e me sentei em frente à ele. A conversa fluiu: falamos de acordes, de solos, até de feijão com arroz (ele adorava) e salada (eu morri de fome). Cada risada me lembrava quem eu era de verdade, e me machucava admitir que ninguém aqui poderia saber.
À tarde, fui apresentada ao estúdio de gravação da gravadora Vasconcellos. Passamos pelo corredor repleto de troféus e fotos de “Melody” em capas de revistas. No final, uma sala fechada exibia o nome dela em letras douradas. Uma porta de vidro mostrava um microfone, fones, cabos — o reino de Melody.
De repente, uma voz serena chamou:
— Está pronta para gravar a nova faixa, Melody?
Reconheci o produtor, o senhor Ricardo, que me estendeu a mão:
— Boa tarde! A voz da Melody tem um tom único. Vamos ensaiar “Segredo de Papel”?
Balancei a cabeça, tomei fôlego e puxei o violão do estojo. Toquei as notas iniciais, pulei um compasso e me senti transportada para o meu mundo de feiras. O produtor franziu o cenho:
— Humm, isso está muito… rústico. Precisamos de algo mais pop, menos folk.
Engoli a vontade de chorar. Sem a minha alma de rua, a música perdia graça. Acordei o lado artista de Melody:
— Claro, vamos adaptar o arranjo com teclados e bateria eletrônica.
Eles anotaram ideias enquanto eu tentava guardar meu grito de desespero.
Quando o dia finalmente acabou, sentei-me no banco do corredor principal com Gabriel. Ele me ofereceu um chocolate da vendedora ambulante.
— Você está estranha — disse ele, meio sem jeito. — Nada grave, só… diferente.
Mexi no cabelo:
— É todo esse… privilégio de repentino. Dá até vertigem.
Ele sorriu compreensivo:
— Eu entendo. Mas saiba que gosto de quem você é, não do que esperam que você seja.
Meu peito doeu. Foi a primeira pessoa sincera que me viu — e não era meu reflexo.
De volta ao camarim, troquei de uniforme e calcei meu tênis gasto. Melody voltaria para comemorar o sucesso da apresentação, mas eu precisava de ar livre. Saí pelo corredor, passei pelos bastidores ainda iluminados, vesti a jaqueta de couro por cima do vestido. Segui até a saída do teatro, onde peguei um suspiro profundo.
O luar banhava as colunas brancas. O vento trouxe o som distante de pessoas rindo. Fechei os olhos e sussurrei:
— Hoje vivi a vida de outra. Mas amanhã… eu vou descobrir quem eu realmente sou.
A lua refletiu no vidro do teatro, fragmentada em pedaços, como meu espelho trincado. Senti meu destino pulsar na garganta. Era hora de desafiar o mundo — e enfrentar o pai que mente, os irmãos que não conheço e a verdade que ainda não foi revelada.
E assim terminou meu segundo dia como Melody Vasconcellos. Um dia de aplausos, máscaras e suspiros. Mas dentro de mim, Luna continuava gritando: “Eu existo.”
Fim do Episódio 3