EPISÓDIO 4 — O SEGREDO DO PAI
Já se passaram três dias desde que comecei a viver como Melody Vasconcellos. Descobri o calor de aplausos e o peso da mentira. Mas nada me preparou para encarar quem ordenou nossa separação: Leonardo Vasconcellos.
Acordei antes do amanhecer. O camarim ainda exibia o vestido prateado da apresentação — agora amarrotado no sofá. Vesti calça jeans e camiseta básica por cima do uniforme que Melody deixou para mim. Precisava de discrição. O plano era simples: entrar no escritório do pai dela e encontrar algum documento, carta ou foto que explicasse quem eu era, de verdade.
Saí pelos corredores silenciosos do teatro, apoiando-me na parede fria de mármore. Cada passo ecoava, e meu coração batia tão forte quanto no ônibus para a cidade. Fui até a limusine preta estacionada atrás, puxei a porta e encontrei as chaves deixadas intencionalmente na bolsa de mão de Melody. O carro ronronou. Liguei devagar e passei pela cancela automática, tateando o endereço de sua mansão no GPS.
Cheguei ao portão principal quatro horas antes de qualquer segurança aparecer. O portão abriu com um clique eletrônico, e eu dirigi pelo jardim iluminado apenas por lâmpadas baixas. Estacionei perto da porta de serviço. Peguei o violão — meu amuleto de coragem — e segui no escuro até a janela do escritório do Sr. Leonardo Vasconcellos.
O vidro refletia meu rosto partida em duas: Luna e Melody. Inspirei, empurrei a janela e subi silenciosamente. Atravessei o tapete persa até a porta entreaberta e ouvi sua voz grave, sem perceber que eu estava ali:
Leonardo (ao telefone):
“Não importa o custo. Aquela menina precisa ficar longe do mundo. Entendeu? Sim, mantenha-a isolada. Eu pago o quanto for preciso.”
O baque no meu peito foi tão forte que quase me denunciou. Segurei o violão junto ao corpo, desequilibrada, mas consegui manter a postura. Ele desligou o telefone e suspirou, sem saber que eu respirava no batente da porta.
Leonardo (virando-se, sem me ver claramente):
“Melody… ela não deve saber. Se descobrir, tudo desmorona.”
Passei os dedos pelo cofre embutido na estante. O segredo dele estava lá. Cada pastinha colorida prometia uma revelação — mas primeiro, precisaria lidar com o homem que senti mais medo em toda a minha vida.
Avancei dois passos. O ranger do chão de madeira denunciou minha presença. Ele ergueu o olhar, avistou minha silhueta e franziu o cenho.
Leonardo (com a voz abafada pela surpresa):
“O que faz aqui, minha filha?”
Meu coração sumiu na garganta. A imagem de um pai austero, terno alinhado, cabelos grisalhos bem penteados… ele me olhava sem reconhecimento, mas com a autoridade de quem controla destinos.
Luna (com a voz trêmula):
“Eu… eu sou Melody.”
Ele franziu as sobrancelhas, desconfiado. Ajeitou a gravata, como quem reajusta poder.
Leonardo:
“Filha, você deveria estar ensaiando. Não entendo essa visita inesperada.”
Tive que conter as lágrimas. Mirei nos olhos dele, procurando vestígios de compaixão.
Luna:
“Não minta para mim. Eu sei sobre a minha irmã.”
Os músculos do rosto dele se contraíram. Fez um gesto rápido: encostou o dedo na campainha da mesa.
Leonardo (com frieza):
“Seguranças!”
Antes que pudesse aceitar o destino, expendurei o violão no ombro como escudo.
Luna (com firmeza):
“Antes de chamar ninguém… você me explica por que me tirou da vida que me pertencia.”
Ele estreitou os olhos, avaliando se eu era mesmo Melody. Depois, deu um passo lento e me empurrou para dentro do escritório, fechando a porta atrás de mim. O coração dele batia mais rápido do que a minha. O poder tremeu na voz dele:
Leonardo:
“Você não é Melody. Você…”
Ele parou, cortado pela própria dúvida. Eu, Luna, encarei o homem que escondeu minha irmã. Foi o momento em que calculei o tamanho da mentira:
Luna:
“Então sou eu. Mas quem é ela? E quem sou eu, afinal?”
Ele ergueu as mãos, derrotado, e olhou para o piano de cauda no canto da sala — herança de uma vida de aparências. Meu olhar seguiu o dele. A sala cheirava a couro caro e papel antigo. Cada troféu era um grito de sucesso que escondia desespero.
Leonardo (com voz rouca):
“Há dezessete anos, minha esposa… ela… não podia cuidar de duas crianças. Uma era frágil demais. Eu decidi que uma ficaria com a família e a outra… desaparecer.”
Meu peito apertou. “Desaparecer” era a palavra que invadia meus piores pesadelos.
Leonardo (com dor):
“Sua mãe implorou para ficar com você. Mas eu temi pela reputação dos Vasconcellos. Melody precisava brilhar. Eu… fiz o que julguei melhor.”
A raiva explodiu em mim como um trovão. Deixei o violão cair pesadamente, e ele se chocou contra a estante.
Luna (gritando):
“Melhor? Melhor para quem? Você abriu mão de mim como se eu fosse um objeto quebrado!”
Ele recuou, com a expressão de um rei deposto.
Leonardo:
“Calma… eu fiz para te proteger. Lá fora… você viveria uma vida de pobreza. Aqui… você teria oportunidades.”
Me aproximei dele, com os olhos cheios de lágrimas.
Luna:
“O que você fez foi me roubar de mim mesma! Eu precisei cantar em feiras, comer o que sobrava, sentir frio e fome… só para existir!”
Ele baixou a cabeça, como se a culpa fosse um peso impossível de carregar.
Leonardo (sussurrando):
“Eu não sabia que a verdade… seria tão destrutiva.”
Suspirei, tentando me acalmar. O eco do meu grito pairou entre nós. Então joguei a última carta:
Luna:
“Agora você vai consertar isso. Eu quero o meu nome. Quero meus documentos. Quero saber quem eu fui antes de você decidir o que eu deveria ser.”
Ele ergueu o olhar — com admiração pela coragem e terror pela iminente ruína de sua imagem.
Leonardo:
“Eu… vou te contar tudo. Mas há um preço.”
Meu coração estremeceu. Preço? O que mais ele poderia me pedir?
Leonardo (com voz firme):
“Você vai continuar fingindo ser Melody… até que eu encontre uma forma de proteger ambas.”
Meu estômago revirou. Proteger ambas… ou manter a mentira viva?
Luna (com determinação):
“Por enquanto, eu aceito. Mas não por muito tempo.”
Ele assentiu, exausto, e abriu a pasta que estava sobre a mesa. Dentro, havia fotos antigas: duas meninas gêmeas de sorriso igual, abraçadas num campo ensolarado. Ao lado, certidões, cartas rasgadas e um testamento misterioso.
Leonardo (voz embargada):
“Isso explica quem somos. Agora, ouça com atenção.”
Enquanto ele lia em voz alta o conteúdo do testamento e das cartas, senti minha vida se revirar de cabeça para baixo. Tudo que eu acreditava, tudo que sonhei, estava ali, amarrado em papéis amarelados.
Fiquei ali, firme, pronta para absorver cada palavra e reconstruir minha história. Porque, naquele instante, o segredo do pai — doloroso e injusto — era a chave para finalmente descobrir quem eu realmente era.