EPISÓDIO 6 — O ÁLBUM QUE FALAVA
Já faziam sete dias desde que meu rosto passou a ser lido como o de Melody Vasconcellos. Aprendi a sorrir para câmeras, a andar elegante, a cantar como se nascesse para isso… mas foi nos olhos de três crianças que encontrei a coragem de buscar respostas.
Sou Luna Vasconcellos, e hoje acordei com um arrepio de expectativa: havia uma pista escondida no álbum antigo que a pequena Clara tanto amava. Era hora de investir no passado para libertar o futuro.
A manhã amanheceu clara, com raios de sol invadindo o quarto de hóspedes. Vesti o uniforme escolar, mas mantive a jaqueta de couro preta — meu amuleto de identidade. Desci as escadas ao som de vozes infantis. As crianças já estavam reunidas na sala de música:
Sofia, saltitando com a coroa de flores que fizemos ontem;
Danielzinho, ajustando o rabicho solto de um cabo USB na estante;
Clara, sentada no tapete, folheando o álbum de fotos que roubamos da estante de Leonardo.
Eles se calaram ao me ver entrar. A nervosinha de sempre, Sofia, fez sinal para eu me aproximar:
— “Melody, hoje é dia de investigar, né?”
Sorri, empurrei o violão nas costas e sentei-me ao lado de Clara. Abraçei o álbum:
— Sim, Sofia. Hoje vamos descobrir algo importante.
Clara ergueu o álbum contra a luz, revelando páginas antigas amareladas. As fotos mostravam:
Duas meninas gêmeas, vestidinhas brancas, sorrindo de mãos dadas — eu e Melody, aos três anos.
Um retrato de família, com Leonardo ao centro, a esposa segurando uma das meninas, e um retrato vazio no lugar da outra.
Cartas datadas, com selos envelhecidos e escrita miúda.
Danielzinho aproximou-se, curioso:
— “Vamos ler as cartas!”
Ele sabia decifrar até hieróglifos, quanto mais aquela letra antiga. Clara virou a página que tinha três cartas dobradas. Sofia apoiou a ponta do dedo na primeira:
Carta 1, datada de 2008:
“Querida Mirna, sei que a decisão foi difícil, mas preciso que cuide da nossa filha mais frágil. Leve-a para segurança e… ame-a como se fosse sua. Eu prometo que retornarei.”
Minhas mãos tremeram. “Filha mais frágil”... isso explicava por que eu fui “desaparecida”. Mas quem era Mirna?
— “Mirna é a governanta antiga, não é?” — perguntou Clara, inclinando o corpo.
— Exato — confirmei. — E ela sabíamos que guardava segredos… mas nada tão íntimo.
Passei para a segunda carta:
Carta 2, 2009:
“Preciso que mantenha segredo. Até que eu resolva as questões da família, ninguém pode saber de vocês. Nossa menina ficará em um orfanato sob outro nome.”
Sofia apertou os lábios:
— “Isso é tão frio!”
Engoli o nó na garganta. Ali, estava a explicação oficial: eu fui abandonada num orfanato e tive meu nome trocado. Era cruel.
— “Mas por quê?” — perguntou Danielzinho, olhando para mim, assustado. — “Ele era tão poderoso...”
— Às vezes, o poder faz as pessoas esquecerem da própria consciência — respondi, fingindo calma.
Passei à terceira carta:
Carta 3, 2011:
“Estou morto de saudades. Amanhã, levo a outra ao colégio interno. Espero que um dia possamos reunir nossas filhas e curar as dores do passado.”
A lágrima que derramei brilhou na luz do sol. Melodramático como novela, mas ali estava: a intenção de reunir as gêmeas. E aquele “espero” trazia a esperança de reconciliação.
— “Vamos mostrar isso ao pai!” — exclamou Sofia, batendo palminhas. — “Ele não pode esconder mais!”
Concordei, mas sabia que enfrentar Leonardo exigia estratégia. As crianças olhavam para mim como se eu fosse a salvadora. Eu nunca pedi esse posto, mas senti que era minha missão.
Decidimos fotografar as cartas com o celular de Clara. Cada imagem armazenada em uma pasta secreta, com senha que só Danielzinho sabia. Assim, ninguém conseguiria apagar as provas.
Com o álbum recolocado na estante, Sofia sugeriu:
— “Podemos ir ao quarto da Mirna?”
Eu hesitei. A governanta desaparecera misteriosamente há anos. Mas ali, naquela mansão cheia de segredos, tudo era possível.
— Vamos — respondi, erguendo o violão. — Mas sigam-me em silêncio.
Saímos da sala de música, descemos o corredor dos camarins e entramos no elevador discreto, sinalizado “Pessoal”. As crianças apertaram o botão do segundo andar, onde ficava o antigo quarto de hóspedes de Mirna. A porta se abriu com um chiado. O quarto estava empoeirado: móveis antigos, cortinas fechadas, papel de parede descascado.
Clara acendeu a lanterna do celular:
— “Olha, tem baú!” — ela apontou para um baú de madeira ao pé da cama.
Aproximei-me, apoiei o violão na cama e abri o baú com cuidado. Lá dentro, encontrei:
Um diário encadernado em couro vermelho;
Um véu de renda amarrotado;
Um chaveiro com duas chaves pequenas.
Sofia estalou os dedos:
— “Chaveiro! Vamos descobrir onde abre!”
Peguei o diário e balancei o chaveiro:
— Primeiro, o diário. Depois, as chaves.
Sentamo-nos no chão de tábuas rangentes. Eu abri o diário e comecei a ler o primeiro parágrafo:
“Hoje minha princesa fará três anos. Por medo do que o mundo dirá, escondi sua irmã gêmea. Espero que estas páginas sejam um dia ponte para nossos corações.”
As crianças se entreolharam, com o rosto pintado de fascínio. Eu sentia a voz de Mirna pulsar naquele texto: amor e culpa misturados.
— “Ela amava as duas!” — disse Clara, com voz embargada de emoção.
— Sim — respondi — Mas tinha medo de contar tudo.
Folheei as páginas seguintes, cada relato confirmava que Mirna, movida pela compaixão, guardou a irmã no orfanato e tentava proteger a mãe e o pai de um escândalo que destruiria a família.
— “Tem mais?” — perguntou Danielzinho, ansioso.
— Sim — falei, folheando até o final — Aqui está a última anotação de Mirna:
“Se alguém um dia descobrir estas palavras, que saiba que fiz o impossível para amar minhas duas filhas. Peço perdão a Deus e peço que elas se encontrem.”
O silêncio se fez pesado. Eu fechei o diário e abracei o chaveiro:
— Essas chaves abrem a caixa secreta no escritório do pai. Temos que ir lá.
Sofia e Clara gritaram de alegria; Danielzinho piscou, decidido a ajudar. Eu senti orgulho e medo ao mesmo tempo: estávamos atravessando a linha do perigo. Mas aquela era a verdade que nascia das sombras.
— “Vamos antes do almoço?” — sugeriu Sofia, correndo até mim. — “Ele costuma sair para reuniões.”
Assenti. Levantei-me, ajeitei o violão nas costas e segurei as mãos das crianças:
— Sigam-me. E lembrem-se: silêncio de igreja, olhos atentos e corações valentes.
Descemos o elevador, percorremos o corredor do escritório e, com as chaves girando no cofre, ouvimos o clique suave: a porta secreta se abriu. Dentro, havia uma caixa de madeira com o brasão da família. Reunimos coragem e, ao mesmo tempo, sussurrei:
— O que estávamos procurando está aqui. Mas agora precisamos enfrentar o mundo com isso.
As crianças se encolheram em volta de mim, prontas para qualquer aventura. E eu, Luna Vasconcellos, senti que a cada descoberta, meu passado se incorporava ao meu presente — até que eu pudesse, enfim, recontar minha própria história.
Fim do Episódio 6