Fendas Dentro da Gente

O calor que vinha do âmbar parecia ter invadido o ar. Embora a caverna fosse fria, todos sentiam algo pulsando, quase como uma febre coletiva. Solva foi a primeira a sugerir descanso. Eles estavam há dias sem dormir direito, e os últimos acontecimentos haviam drenado mais do que energia: haviam arrancado pedaços de certeza.

Instalaram-se próximos à formação que parecia menos instável — uma parede de feldspato que refletia luz em cores esmaecidas. Tragg ficou de vigia, como sempre. Mirkon se isolou, afiando a lâmina curva que usava para guiar Ferromir. Nara deitou com o mapa tatuado nas costas encostado na pedra, olhos abertos demais para alguém exausta.

Kael e Solva adormeceram quase ao mesmo tempo, sem perceber.

Mas o sono não era silêncio.

Na escuridão de sua mente, Kael viu-se numa câmara circular. O teto não existia — no lugar, havia uma espiral de pedras flutuantes, girando lentamente ao redor de um buraco negro que pulsava como um coração. Ele estava de pé, mas sem corpo. Sua forma era líquida, feita de veios minerados e cristais partidos. Ali, tudo vibrava com significados. Memórias flutuavam em fragmentos de rochas transparentes.

Do outro lado da sala, Solva também estava. Mas não como ele a conhecia. Seus olhos eram veios de ágata, e seus cabelos se estendiam como raízes minerais. Ela murmurava algo, e as pedras ao redor respondiam, mudando de cor.

Kael tentou falar, mas sua voz virou poeira.

Então algo se partiu.

Do centro da espiral, surgiu uma rachadura. Mas não numa pedra — numa lembrança. Kael viu sua infância revivida em segundos: Tragg o encontrando, o primeiro Oremon que recusou obedecê-lo, as noites em que sonhava com tremores. Tudo era memória, mas com uma textura nova, como se não pertencesse só a ele. Como se tivesse sido esculpida por outras mãos.

Solva virou-se para ele naquele lugar impossível. Sua voz chegou como eco no osso:

— Você também sente? Isso tudo… não é só lembrança. É fundação. Fenda. Fratura.

A rachadura cresceu. E antes que ambos fossem engolidos, ouviram um som — não externo, mas presente. Real. De fora.

Metal roçando pedra.

Passos que não pertenciam a ninguém.

Kael despertou. O brilho âmbar tinha cessado. Solva ainda dormia, as mãos trêmulas, olhos girando sob as pálpebras. Nara estava ajoelhada ao lado deles, o rosto tenso.

— Acordem! — sussurrou ela, puxando Kael pelo braço. — Há coisas lá fora.

— Coisas? — Kael ainda tentava se reorientar. — Você viu o quê?

— Não sei. Mas não são humanos. Nem Oremons selvagens. E não andam… eles perfuram.

Ao fundo, vindo da escuridão, um som agudo cortou o ar. Como uma broca girando contra o silêncio.

Tragg já estava de pé, o bastão firme nas mãos.

— A Corporação nos achou.

Mas Kael não conseguia parar de tremer. Não pelo som. Mas porque ele ainda ouvia a rachadura dentro de si. E agora, sabia:

Nem toda fenda está na terra. Algumas estão no próprio peito. E não se fecham. Nunca.