Os dias em que Naruto se sentia "normal" estavam cada vez mais distantes.
Agora, acordar era estranho. Seus sentidos pareciam sempre despertos, mesmo antes de abrir os olhos. Sentia o ar vibrar com o movimento dos insetos do lado de fora da janela. Sabia quando alguém estava por perto só pelo cheiro. Até o gosto da água parecia mais... vivo.
E, acima de tudo, o espelho já não lhe mostrava o rosto de um "garoto".
Seus olhos estavam maiores, felinos. Os cabelos, mais longos e dourados. O corpo — mesmo sem qualquer jutsu — era visivelmente feminino, com curvas suaves, seios pequenos porém firmes, e a cintura estreita.
Mas o que mais lhe perturbava era a sensação de paz.
A transformação, embora chocante, parecia certa.
— Isso é o instinto, sussurrou Kurama em sua mente.
— Você nunca teve uma identidade humana sólida, Naruto. Cresceu sendo rejeitado. Invisível. Nenhum espelho te dizia quem você era... então seu corpo assumiu a forma que mais combinava com sua essência: a minha.
Naruto sentou-se no telhado, olhando o céu com os olhos marejados.
— Eu... eu nunca pensei nisso. Sempre achei que era só bagunça. Só solidão. Mas você tá dizendo que... eu sou assim porque nunca fui ninguém?
— Você sempre foi alguém. Apenas... nunca teve chance de descobrir quem. Agora, seu corpo está revelando isso por você.
Ele se lembrou de quando era mais novo. Das vezes em que pediu comida e lhe negaram. Dos dias em que dormia sem comer. Dos hematomas ignorados. Das doenças que passaram sozinhas.
A realidade bateu como um soco:
Ele já devia ter morrido.
E então veio a revelação mais brutal.
Kurama falou com voz firme:
— Você realmente morreu, kit.
— Ou, ao menos, sua parte mortal morreu. Quando era pequeno, você parou de se alimentar. Seu corpo não aguentava mais. Mas eu estava lá. E fiz o que era necessário.
— Substituí suas células. Pouco a pouco. Te reconstruí. Agora, mais de 70% do que você é... é chakra vivo. Chakra meu. É por isso que você nunca ficou doente de verdade. É por isso que suas feridas sempre somem.
— Você é, de fato, meu filhote.
Naruto se abraçou com força, lágrimas escorrendo silenciosas. Não de medo — mas de alívio. Finalmente, tudo fazia sentido.
—
Na manhã seguinte, Naruto tomou coragem.
Vestido com roupas que disfarçavam seu novo corpo, subiu até o gabinete do Terceiro Hokage. Sarutobi o recebeu com o sorriso de sempre... que desapareceu ao ver o rosto do garoto — ou da jovem que agora estava diante dele.
— Naruto...?
Naruto ficou em silêncio por longos segundos. Até finalmente, com voz embargada, disse:
— Eu... preciso te contar tudo.
E contou.
Falou sobre a transformação, a dor, o sangue, a conversa com Kurama, os instintos. Tudo. Sarutobi escutou sem interromper, e seu rosto ficou cada vez mais grave.
Quando Naruto terminou, o Hokage se levantou devagar, foi até ele e o abraçou. Um gesto simples, mas carregado de séculos de culpa.
— Naruto... me perdoe. Eu deveria ter cuidado melhor de você. Devia ter feito exames médicos, devia ter te dado mais que um teto e um nome... você é meu neto adotivo, mesmo que nunca tenha te dito isso em voz alta. E agora... você passou por tudo isso sozinho.
Naruto não chorou — mas algo em seu peito se aqueceu. Pela primeira vez, se sentia verdadeiramente visto.
—
O Hokage o levou imediatamente à Torre de Pesquisa Médica, requisitando total sigilo e privacidade. Tsunade não estava na vila, mas Shizune conduziu os exames com o cuidado de quem lida com algo sagrado.
Os resultados vieram em dois dias — e deixaram todos em choque.
Naruto não tinha mais órgãos reprodutivos masculinos. Em seu lugar, um sistema completo e funcional, embora atípico, de uma jovem kunoichi.
Seus ossos, pele e músculos apresentavam uma densidade diferente — não exatamente humana, mas uma fusão entre matéria orgânica e chakra sólido.
E mais:
Suas células não se dividiam. Elas se renovavam por fluxo de chakra.
Ele era, essencialmente, imortal.
Sarutobi, com olhos marejados, recebeu os dados com reverência.
— Então... é por isso que ninguém nunca conseguiu machucá-lo de verdade. É por isso que mesmo o Sandaime Kazekage, Orochimaru ou Danzo nunca o tocaram. Seu corpo se defende. Qualquer célula retirada... se desfaz em chakra e volta pra ele.
Naruto, ainda atordoado, sussurrou:
— Eu sou um monstro...?
Sarutobi o segurou pelos ombros, firme.
— Não. Você é um milagre. Um ser único. Um presente da vida e da natureza. E eu juro... pela minha alma... que nunca mais deixarei você sozinho.
—
Naquela noite, sozinho novamente, Naruto olhou o reflexo. Viu os olhos dourados de raposa, os cabelos fluindo como seda, a pele brilhando com chakra puro.
Pela primeira vez, disse em voz baixa:
— Eu... sou eu.
E Kurama respondeu, com ternura:
— Sim, meu filhote. Agora, finalmente, é.
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Continua...