A primeira sensação foi a dor.
Não aquela dor aguda, como a de uma facada ou de um osso quebrado. Era algo profundo, difuso, como se os nervos estivessem sendo costurados de novo — como se o corpo estivesse nascendo pela segunda vez, músculo por músculo.
Johan abriu os olhos devagar. O céu acima não era o mesmo que conhecia. O azul era mais vibrante, quase mágico, e o ar parecia mais puro, mais leve — quase doce. Árvores altas o cercavam, copas fechadas como uma muralha de folhas. Uma floresta.
Seu corpo doía, mas era uma dor diferente, estranha, como se ele estivesse... desalinhado.
Tentou se mover e percebeu: seus braços eram mais longos, os dedos mais finos. Quando levou a mão ao rosto, sentiu a pele lisa, os traços delicados, mas algo estava errado. Sacou um fio de cabelo e observou — era prateado.
— Que porra...? — sussurrou, com a voz rouca.
Sentou-se com esforço. Seu peito subia e descia de forma irregular. Ao olhar para as mãos e pernas, ficou claro: aquele não era seu corpo. Era mais leve, mais ágil, como o de um corredor. E as orelhas... mais longas. Pontudas.
Seus olhos se arregalaram.
— Isso só pode ser um sonho. Ou uma crise existencial com cogumelos... — murmurou, tentando forçar o humor ácido como forma de contenção. Mas a voz tremia.
A poucos metros dali, entre arbustos altos, outro corpo se mexeu. Johan se ergueu com dificuldade e se aproximou com cautela.
Era Damian, ou pelo menos o que restava dele. O rosto ainda lembrava o antigo, mas agora havia algo etéreo nele — os traços mais finos, os olhos ligeiramente mais puxados, e o cabelo, antes castanho, agora tinha um tom dourado e caía até os ombros. A pele, clara, parecia brilhar sob a luz filtrada pelas árvores.
Damian respirava com dificuldade, de bruços na grama úmida.
— Damian! — chamou Johan, ajoelhando-se ao lado dele. — Você... tá vivo?
Damian abriu os olhos lentamente, piscando várias vezes. Quando viu Johan, arregalou os olhos, surpreso e aliviado ao mesmo tempo.
— J-Johan...? — murmurou. — O que... aconteceu? A gente... morreu?
Johan assentiu com lentidão. Não precisava dizer nada. Ambos lembravam.
— Eu vi você... você correu, e... e depois... — a voz de Damian se perdeu em meio à respiração pesada. Ele se calou e apenas chorou em silêncio por alguns segundos.
— Eu sei — disse Johan, baixo. — Eu também vi.
O silêncio da floresta era estranho. Vivo, mas distante. Nenhum som de carros, nenhum grito, nenhum sinal de civilização. Apenas o vento suave e o canto ocasional de pássaros desconhecidos.
— Tem mais alguém? — perguntou Damian, tentando se erguer.
Antes que Johan pudesse responder, um grito abafado soou entre as árvores próximas.
— AAAH, QUE MERDA É ESSA?!
Os dois se viraram bruscamente. A voz era inconfundível.
— Jorn — disseram ao mesmo tempo.
Do meio da vegetação surgiu uma figura grande, desajeitada, com olhos arregalados e a cara de puro pânico. Seu cabelo estava ainda mais bagunçado que o normal, e o corpo... gigantesco. Ombros largos, braços fortes, dentes mais afiados. A pele estava um pouco mais acinzentada. E as presas... sim, presas.
— EU TÔ COM PRESAS?! — gritou Jorn, passando a mão pelo rosto. — E QUE CARALHO ACONTECEU COM MINHAS MÃOS?!
Johan quase caiu de tanto rir, não porque achava engraçado, mas porque seu cérebro não conseguia lidar com mais nada. Era o riso do colapso.
— Jorn... você tá... diferente.
— DIFERENTE? EU TÔ UM MONSTRO!
— Meio-orc, eu acho — disse Damian, se levantando com dificuldade.
— MEIO O QUÊ?!
Antes que a crise ficasse pior, outro som surgiu mais adiante. Um gemido abafado, um suspiro arrastado.
Johan virou o rosto, já esperando o que veria.
E ali, deitado de costas, com o rosto suado e a barba por fazer, estava Greg. Mas... menor. Ligeiramente mais atarracado. Com os braços mais grossos e firmes, e os olhos semicerrados de dor.
— Eu... tô... morto? — murmurou ele.
— Bem-vindo de volta, senhor anão — respondeu Johan, com um sorriso cansado.
Greg sentou-se devagar, esfregando os olhos como se ainda estivesse sonhando. Levou a mão à própria cabeça, tocando os cabelos cacheados, agora mais grossos e curtos. Quando viu seus braços — mais curtos, musculosos, cobertos por uma leve camada de pelos —, arregalou os olhos.
— ...Eu fiquei... mais baixo? — disse, quase em sussurro.
Jorn se aproximou, ainda resmungando e tropeçando nas próprias pernas.
— Irmão, você tá um gnomo? Um duende? — zombou, apontando.
— Anão, imbecil — corrigiu Johan, cruzando os braços. — Mas obrigado por confirmar que seu cérebro não veio junto na reencarnação.
Greg olhou para as mãos de dedos grossos, depois para os outros, tentando reunir coragem para fazer a pergunta que o consumia.
— Isso aqui... é real?
Damian respondeu antes dos outros.
— A gente morreu. Eu lembro de tudo... o Lucas... o sangue... — sua voz vacilou. — Isso... isso não é um sonho. Não pode ser.
Houve silêncio.
A floresta os cercava com árvores altas, copas densas que mal deixavam a luz do sol passar. O ar era puro, mas carregado de umidade, com cheiro de terra viva e folhas antigas. Insetos coloridos zumbiam entre os arbustos, e ao longe se ouvia um som agudo — talvez o grito de algum animal desconhecido.
— Isso não é o Brasil, definitivamente — disse Johan, olhando em volta.
— Nem o planeta Terra, eu diria — completou Damian, ainda pálido.
Jorn caminhou até um pequeno córrego que cortava a clareira onde estavam. Ajoelhou-se e olhou seu reflexo.
— Eu tô feio. Mais feio do que já era. — Depois ficou em silêncio por um momento. — E forte. Tipo... muito forte.
Ele apertou uma pedra com as duas mãos e partiu-a no meio. A pedra estalou e caiu em dois pedaços.
Greg arregalou os olhos.
— Tá zoando.
— Eu... não sinto fome — comentou Damian, olhando para as árvores ao redor. — É como se... só o sol bastasse.
— Isso combina com os elfos — respondeu Johan, pensativo. — Pelo que eu sei de RPGs... elfos têm conexão com a natureza, vivem mais, são ágeis, mas não muito fortes.
— Anões são o oposto, né? — disse Greg. — Fortes e duros de matar.
— E você, Sr. Metade-Dragão-das-Cavernas? — ironizou Johan, olhando para Jorn.
— Meio-orc, aparentemente. — Jorn deu de ombros. — Força física e resistência absurda. E talvez uma leve tendência à raiva.
— Ótimo — murmurou Damian. — Exatamente o que a gente precisava: um Jorn nervoso.
Eles riram. Pela primeira vez desde o massacre, riram de verdade. Foi curto, nervoso, quase um soluço, mas verdadeiro.
E então, o riso morreu.
— Onde exatamente a gente tá? — perguntou Greg.
Silêncio.
Todos olharam para o céu entre as copas das árvores. Nenhuma construção à vista. Nenhum caminho. Nenhuma placa. Apenas floresta.
— Eu não faço ideia — disse Johan, baixo. — Mas se isso é uma segunda chance... então a pergunta certa não é “onde”, mas “por que”.
Damian sentou-se sobre uma pedra e olhou para as próprias mãos elfas. Seus olhos brilhavam de inquietação.
— A gente precisa entender esse mundo. O que somos agora. O que tem aqui fora. Se... se isso é alguma espécie de reencarnação... então talvez tenha um propósito. Um motivo.
— Ou alguém brincando com a gente — completou Johan.
— E se tiver monstros? — perguntou Greg, em voz baixa.
Jorn sorriu.
— Então vai ser igual Dark Ring. E eu sempre fui bom nisso.
— Exceto quando você morria na primeira área. — Johan suspirou.
— Isso foi uma vez, seu babaca.
O dia começava a declinar enquanto os quatro caminhavam sem direção. Os sons da floresta mudavam sutilmente, o calor dava lugar ao vento frio e úmido.
Eles não sabiam onde estavam. Não sabiam o que eram. Não sabiam o que fazer.
Mas estavam vivos. E juntos.
E isso, por ora, era o suficiente.