O dia da partida chegou com o céu limpo e o vento leve. Trivana parecia igual a qualquer outro dia: moradores cuidando do campo, crianças correndo entre galinhas, o cheiro de pão recém assado vindo das casas. Mas para os quatro amigos, aquele era um novo ponto de virada.
Damian ajustava a alça da pequena mochila de couro que lhe deram, onde carregava frutas secas, um pedaço de tecido, um cantil e um canivete rústico. Nada demais, mas mais do que tinham quando chegaram. Seus cabelos dourados refletiam a luz da manhã com um brilho tênue.
Johan fechava o fecho de um casaco escuro, com a mesma expressão indiferente de sempre, mas os olhos denunciavam concentração. Jorn, como sempre, estava inquieto, segurando uma vara de madeira como se fosse uma lança improvisada. E Greg organizava os poucos suprimentos que haviam reunido: pão duro, água, um pedaço de queijo, e três moedas de prata.
No centro da vila, próximo ao altar dos Primogênitos, o velho Harnold os aguardava. Estava em pé, com o cajado ao lado, como sempre.
— Prontos para deixar essa joça? — perguntou ele, com um meio sorriso.
— Pra ser sincero… não — respondeu Johan.
— Isso é bom. Os que partem com pressa, voltam quebrados.
O grupo se aproximou. Nenhuma grande multidão se formou — alguns moradores acenaram de longe, outros apenas observaram em silêncio. As crianças que antes fugiam de Jorn agora o espiavam por trás de cercas e muros, curiosas.
Harnold olhou para os quatro com calma.
— Vocês chegaram aqui como feras feridas. Desconfiados, brutos, meio perdidos. Agora vão como gente. Isso é raro. E valioso.
Damian se curvou levemente em respeito.
— Obrigado por nos acolher. A maioria teria nos expulsado… ou pior.
— Eu sou velho demais pra temer o que é diferente. — Harnold ergueu uma sobrancelha. — Ou talvez burro demais, vai saber.
Greg riu baixo.
Jorn coçou a nuca, visivelmente desconfortável.
— Então... tipo... se a gente voltar, tem lugar aqui?
— Vai depender do que vocês se tornarem. — Harnold cruzou os braços. — Mas minha porta estará aberta. Desde que não tragam monstros, magias proibidas, ou ideias de revolução.
— Ah, então já era — murmurou Johan.
O grupo riu, leve.
O velho os observou por um instante mais, então deu um passo à frente e estendeu o braço. Um aperto de mão firme com cada um deles.
— A estrada até Henvyra segue pelo sul. Duas ou três noites, se forem rápidos. A estrada é usada por mercadores, mas nem sempre é segura. Fiquem atentos.
— E a cerimônia? O que a gente deve esperar? — perguntou Damian.
— Dores. Luz. Vozes. E respostas. Talvez não as que querem. Mas as que precisam.
Minutos depois, os quatro estavam fora dos limites de Trivana. O som da vila foi sumindo atrás deles — martelos, galinhas, vozes distantes. Só restava o som das próprias passadas sobre a terra.
A estrada se abria à frente, ladeada por campos e pequenas colinas. E além delas, em algum ponto distante: Henvyra.
O lugar onde descobrirão quem realmente são agora.
E o que o Éter reserva para eles.
O caminho ao sul serpenteava entre colinas baixas e campos abertos. Não havia muralhas, estradas de pedra nem carruagens luxuosas — apenas trilhas de terra seca, com marcas de rodas antigas e pegadas apagadas pelo tempo. À direita, um pequeno riacho acompanhava parte da trilha, cintilando sob o sol da manhã.
— Nunca pensei que andar tanto fosse pior do que morrer — resmungou Greg, ofegante, carregando a mochila torta nas costas.
— Você morreu sentado — retrucou Johan, com um meio sorriso. — Agora tem que compensar.
— Tô compensando é minha lombar — murmurou Jorn, que caminhava à frente, usando a vara como apoio.
Damian não respondia. Ele caminhava em silêncio, os olhos atentos à paisagem. Desde que saíram da vila, estava mais sério. Havia algo em sua expressão que misturava tensão e expectativa — como se esperasse que algo acontecesse a qualquer momento.
Naquele dia, nada aconteceu.
Acamparam ao lado de uma árvore larga, que oferecia sombra e certa proteção contra o vento. Não havia fogueira — apenas pão seco, água morna e conversa contida.
Na segunda noite, porém, o silêncio da estrada foi interrompido.
Era por volta da meia-noite quando Greg acordou primeiro. O som o tirou do sono leve: galhos quebrando. Olhou em volta, nervoso. As brasas da fogueira ainda soltavam um fio de fumaça.
Ele cutucou Damian, que dormia ao lado.
— Ei... Ei...
Damian abriu os olhos, os reflexos despertando com rapidez.
Johan e Jorn já estavam de pé.
— Tem alguma coisa nos arbustos — sussurrou Johan. — Eu vi olhos.
— Animais? — perguntou Greg, se levantando devagar.
— Ou algo pior — murmurou Damian.
Um rugido baixo respondeu.
Entre as árvores, quatro figuras pequenas, peludas e agressivas surgiram. Eram feras caninas, do tamanho de lobos, mas com garras alongadas e olhos brancos como névoa. Uma delas tinha escamas nas costas.
— Ótimo — disse Johan. — Mais bichinhos de pelúcia do inferno.
— Formem um círculo! — gritou Jorn, assumindo a frente.
As criaturas atacaram.
O combate foi rápido, confuso, barulhento. Jorn usou sua força para golpear uma das bestas com um tronco — quebrando-lhe as costelas num estrondo. Greg girou o bastão e acertou outra no focinho, cambaleando. Johan e Damian atacavam juntos, usando precisão e instinto, desviando e contra-atacando como se os corpos soubessem o que fazer antes da mente.
Uma das feras cravou as garras no braço de Damian. Ele gritou, caiu de joelhos — mas no reflexo, puxou uma pedra e a enfiou na garganta da criatura. Sangue espirrou.
Minutos depois, tudo estava em silêncio. As quatro criaturas juncavam o chão, mortas.
— Alguém machucado? — perguntou Johan, ofegante.
— Só meu orgulho — disse Greg, respirando com dificuldade.
— Eu tô bem — disse Damian, olhando o corte no braço. — Só superficial.
Eles se sentaram em volta da fogueira, ofegantes. A lua iluminava os rostos cansados.
— A gente tá lutando melhor do que deveria — comentou Johan, depois de um tempo. — É como se nossos corpos soubessem coisas que a gente não sabe.
— Ou como se... estivéssemos sendo preparados pra isso — murmurou Damian.
— Isso não me tranquiliza — disse Greg.
Jorn deitou-se no chão, com os braços cruzados atrás da cabeça.
— Bom... pelo menos vamos chegar em Henvyra com história pra contar.
Na manhã seguinte, o céu estava limpo e o vento trazia o cheiro de pedra e fumaça.
No alto de uma colina, ao fim da trilha, os quatro pararam ao mesmo tempo.
— Ali está — disse Damian.
Henvyra se estendia abaixo como um tapete de telhados de argila e muralhas de pedra clara. Era uma cidade média, movimentada, com torres de templos elevando-se acima das casas. Bandeiras brancas com o símbolo dos Primogênitos tremulavam nos portões.
— Então é aqui que tudo muda de novo — disse Johan.
— Ou recomeça — completou Damian.
E então, sem mais palavras, eles desceram a colina.
Rumo ao que quer que o Éter tivesse reservado.