O mundo de Othrel não parava. E nem eles.
Após a missão na dungeon recém-descoberta e o reconhecimento sutil que vieram com ela, o Grupo Trivana começou a mergulhar em uma nova rotina: a vida entre exploração e aprendizado, entre o concreto e o invisível. A guilda não era mais um lugar estranho, e Henvyra não parecia mais uma cidade de passagem. As ruas começavam a ser reconhecíveis, os rostos menos anônimos.
Othrel, aos poucos, deixava de ser um mundo novo. Tornava-se... deles.
A estalagem Estrela Partida continuava sendo seu lar improvisado — o colchão era duro, o teto vazava quando chovia, e a dona do lugar parecia achar que humor era uma doença contagiosa. Mas ali, entre paredes de madeira mal remendada, eles compartilhavam refeições, piadas e silêncios.
— Tem um rato no meu travesseiro — comentou Greg certa manhã.
— Tá dividindo aluguel? Então deixa ele — respondeu Johan, sem abrir os olhos.
Depois de comerem pão adormecido com queijo salgado, seguiam até a Guilda. Lá, dividiam o tempo entre tarefas básicas, treinos e incursões cuidadosamente planejadas na dungeon. A entrada era restrita aos três primeiros níveis, mas já havia mais do que o suficiente ali embaixo para testar coragem, força e sanidade.
Em uma manhã nublada, enquanto verificavam o quadro de missões, foram abordados por Naven, um aventureiro de Rank Bronze. Cabelos cinzentos, rosto barbeado pela metade e olhos de quem já vira coisas demais para ser impressionado por moleques.
— Vocês são os quatro do grupo novo, certo? Trivana?
— Depende — respondeu Johan, desconfiado.
— Se for cobrança, nunca vimos.
— Sou Naven, Rank Bronze. A Kaera pediu pra eu ver se vocês tinham interesse em treinar magia.
Damian se endireitou.
— Magia... de verdade?
— De verdade, não. Mas o bastante pra vocês deixarem de ser pedaços de carne com broche mágico.
Ele não sorria. Mas tampouco zombava. Era o tipo de sujeito que falava apenas o necessário.
— Nos encontramos no pátio de treino em uma hora. Levem roupas leves. E deixem as expectativas em casa.
O treinamento aconteceu no pátio de fundos da Guilda. Havia bonecos de madeira, círculos de invocação riscados na pedra e marcas negras de explosões anteriores.
Naven foi direto:
— Controlar magia é como aprender a respirar de novo. Vocês têm afinidade com o Éter. Ótimo. Mas isso não faz de vocês magos. Faz de vocês perigos ambulantes mal treinados.
Johan foi o primeiro. Sentado com as pernas cruzadas, tentava focar no pulso da própria energia.
— Pense como se quisesse atravessar algo com sua presença. Corte. Perfure. Seja frio e calculista.
Com algum esforço, uma linha fina de eletricidade percorreu seus dedos. Ele cerrou os dentes e manteve o controle por dois segundos antes de soltar.
— Parece uma agulha atravessando minha cabeça.
— Ótimo. Você tem talento.
Depois, tentou com Metal. Criou uma pequena lâmina opaca no ar que se dissolveu em segundos.
— Isso serve pra cortar pão?
— Por enquanto, sim — respondeu Naven.
Damian foi o segundo.
— Vento é movimento. Fluidez. Deixe a emoção fluir sem quebrar o controle.
Damian fechou os olhos. A brisa ao redor se intensificou. Seus cabelos dourados balançaram, e pequenas folhas ao redor se ergueram.
— Boa sensibilidade — comentou o instrutor. — Agora tente com Luz.
Demorou mais, mas uma esfera suave brilhou entre suas mãos.
Damian sorriu. Pela primeira vez, parecia que algo respondera à sua alma.
Greg teve mais dificuldade. Terra exigia concentração absoluta, e Fogo exigia impulso.
No primeiro exercício, sua magia escorregou, criando apenas um tremor leve. No segundo, quase queimou as próprias mangas tentando acender uma labareda.
— Eu sou mais... defensivo? — arriscou.
— Você é mais bruto. Vai precisar trabalhar isso com calma.
Ainda assim, Greg demonstrou uma resistência notável. A magia o desgastava menos do que os outros.
Jorn, por fim, teve o treino mais explosivo.
Com Raio, ele gerou uma descarga instável que fritou um dos alvos. Gelo se recusou a surgir. Fogo respondeu rápido demais, queimando parte do chão. Vento foi o único que surgiu com equilíbrio.
— Você é um barril de pólvora tentando ser uma tocha — resmungou Naven.
— Eu levo isso como elogio.
Apesar do caos, Jorn tinha um potencial bruto assustador. Naven apenas balançou a cabeça, como quem sabia que teria dor de cabeça no futuro.
Nas semanas seguintes, o grupo dividia seu tempo entre dungeon e treinos. Aprenderam a conjurar magias básicas, a manter o foco, a entender os sinais do Éter. A progressão era lenta, mas visível, a sincronia crescia. As piadas também.
— Jorn quase se congelou hoje — disse Greg.
— Era o treino de Gelo, não o de tomar banho — retrucou o meio-orc.
— E Johan já aprendeu a cortar maçã com magia de Metal — disse Damian.
— Precisamos de prioridades — respondeu Johan, sério.
Em uma tarde chuvosa, receberam um convite inesperado: o grupo Prata Alvorada Carmesim os convidara para acompanhar uma breve exploração lateral do terceiro andar da dungeon.
— Por quê? — perguntou Johan.
— Porque vocês não morreram ainda. Isso diz muito — respondeu a líder da Alvorada, uma mulher alta de pele morena e olhos dourados chamada Celiah. — E porque queremos ver o que vocês fazem com mais pressão.
A seção lateral era protegida por runas antigas. Celiah usou uma chave mágica para quebrar o selo.
O cheiro que saiu do corredor era... errado. Uma mistura de sangue velho e madeira podre.
— Algo morreu aqui. Ou vive de morrer — murmurou Damian.
Avançaram devagar. Os corredores tinham inscrições antigas nas paredes, símbolos distorcidos como se fossem memórias de runas verdadeiras.
Foi quando a criatura surgiu.
Primeiro, ouviram o som — um arrastar úmido. Depois, o brilho púrpura nos olhos. Um corpo feito de carne deformada, placas de osso e raízes enegrecidas. As mandíbulas se abriam em ângulos impossíveis. E então... atacou.
— Formem linha! — gritou Celiah.
Mas era tarde. A criatura se lançou para o grupo de apoio. Greg saltou à frente para proteger Damian, mas atrasou o golpe. Jorn invocou fogo, mas perdeu o controle, e as chamas quase os acertaram também.
Damian criou uma barreira de vento que reduziu o impacto, mas foi Johan quem se moveu com precisão. Avançou, olhos fixos, e cravou a lâmina encantada no flanco da criatura.
O bicho gritou — um som que parecia vir de dentro da cabeça.
Jorn recuperou o foco, saltou e usou a lança com impacto de Raio. A criatura caiu, convulsionando. Greg terminou com um golpe pesado da maça.
O silêncio caiu como uma cortina.
Celiah os observou.
— Vocês são instáveis. Mas eficientes.
Na volta para a cidade, o grupo estava exausto, mas em silêncio. À noite, cada um lidou com a experiência à sua maneira.
Greg e Damian ficaram na escadaria da estalagem, olhando para o céu encoberto.
— Você pensa nisso? — perguntou Damian. — Sobre... o que fomos?
— Todo dia — respondeu Greg. — Lá, eu era... nada. Aqui, eu posso ser algo. Mas também posso morrer a qualquer momento.
— Talvez isso torne tudo mais real.
— Talvez.
Damian encarou as estrelas.
— Eu ainda não sei o que vim fazer aqui. Mas... quero descobrir.
Jorn, depois de tomar um banho gelado (quase por acidente), comentou em voz alta enquanto trocava de roupa:
— Acho que tô começando a gostar disso.
— De apanhar de monstros? — perguntou Johan.
— De viver aqui. Daqui. Sei lá... parece que faz mais sentido do que antes.
Johan apenas olhou para ele e depois se afastou até o espelho.
Parou ali, encarando a cicatriz. Passou o dedo pela linha que cruzava a sobrancelha. Não doía mais.
Mas algo dentro dele... se movia.
No dia seguinte, enquanto se preparavam para sair da Guilda, Kaera os interceptou.
— Estão vivos. Bom sinal.
— Agradecemos sua empolgação — disse Johan.
— A partir da próxima semana, estão liberados para requisitar missões externas de ciclo completo. Fora da cidade. Patrulhas, caçadas, contratos de fronteira.
— Isso é sério? — perguntou Greg.
— Vocês provaram que não são completos inúteis.
Foi o mais próximo de um elogio que ela jamais deu.
Naquela noite, todos dormiram rápido.
Menos Damian.
Ele permaneceu sentado na sacada da estalagem.
O céu estava limpo, com estrelas distantes.
Damian fechou os olhos. Por um segundo, ouviu algo além — como uma pulsação distante.
O Éter. Ou algo que o tocava.
Quando abriu os olhos, o mundo parecia mais vasto do que nunca.
E eles... mais vivos do que jamais haviam sido.