O som rastejante vinha se arrastando pelo corredor — algo entre o arranhar de unhas em pedra e o bater lento de ossos sendo arrastados. Indra congelou por um segundo, o revólver tremendo em sua mão. Ben, tentando se erguer do chão, tossia com dificuldade, enquanto o sangue escorria de um corte na testa.
Ottis, ainda de pé no centro do pentagrama, parecia em transe. Seus olhos estavam completamente negros agora, como dois poços vazios. Sua respiração era pesada, profunda… sincronizada com o pulsar vermelho que começava a irradiar do símbolo no chão.
"Ele está... acordando." murmurou Ottis com a voz rouca e distante. "O Véu se partiu."
A temperatura do ambiente despencou. As lanternas começaram a falhar, piscando em estalos irregulares, como se algo estivesse interferindo no campo magnético ao redor. E então, do corredor, ele surgiu.
Primeiro foram as mãos: longas, descarnadas, com dedos demasiadamente compridos e articulações tortas. Depois, a silhueta emergiu — contorcida, grotesca, caminhando em quatro membros, mas com a cabeça virada para cima, como se desafiasse a lógica humana.
A criatura parecia feita de sombra sólida. Não tinha pele, apenas um corpo coberto por algo semelhante a fuligem viva, pulsando como carne recém-nascida. Seus olhos, se é que se podiam chamar assim, eram buracos incandescentes, como carvões ardendo em fogo negro.
Indra mal conseguia respirar. Cada célula de seu corpo gritava para correr, mas suas pernas estavam enraizadas no chão.
A criatura parou na entrada do quarto e cheirou o ar, como um cão farejando o medo.
Então falou.
Mas não foi uma voz que saía de sua boca. Foi algo que vibrou dentro da mente dos presentes — como se mil vozes falassem ao mesmo tempo, em línguas antigas e contraditórias.
> “O sangue chamou. A porta se abriu. Onde está o traidor?”
Ottis caiu de joelhos e abriu os braços, como se esperasse ser abraçado pela entidade.
"Eu te trouxe, como foi ordenado! O sacrifício está completo!"
A criatura inclinou a cabeça, e por um segundo, o quarto todo pareceu ser engolido por uma onda de escuridão. Quando a luz retornou, Dean já não estava mais ali. Nem seu corpo, nem seu sangue. Como se nunca tivesse existido.
As vozes soaram outra vez, agora mais furiosas. O chão tremeu. O pentagrama começou a se apagar.
A criatura se aproximou e se transformou em uma fumaça negra pútrida, penetrando o corpo de Ottis e extinguindo sua humanidade.
Dentes afiados rasgaram a boca de Ottis, alongando-se até formarem presas. Suas mãos se abriram em garras retorcidas, a pele esverdeada se soltando em placas fétidas enquanto ele crescia, assumindo a forma de uma criatura humanoide deformada, com membros longos demais e músculos latejantes como se estivessem vivos.
Um rugido baixo, gutural, ecoou pelos corredores.
"Não... não..." Indra levou a mão trêmula à bolsa, sacando o revólver.
A criatura que foi Ottis avançou com velocidade inumana, as garras erguidas para dilacerá-los.
BANG!
O estampido ecoou ensurdecedor pelas paredes do sanatório. A bala prateada acertou em cheio o peito da criatura, que soltou um grito horrendo. Ossos se fragmentaram em seu torso enquanto uma fumaça escura começou a sair do ferimento.
Indra não esperou para ver se aquilo era suficiente. Ele segurou Ben com força, o braço dele passando por cima dos ombros, e começou a correr pelos corredores claustrofóbicos do sanatório.
Portas quebradas batiam com o vento, sussurros ecoavam nas sombras. Ao longe, a luz fraca da lua vazava por janelas quebradas, indicando a saída.
Eles correram em direção a saída. Atrás deles, a criatura rugia, fazendo o prédio inteiro tremer. Portas batiam sozinhas, as janelas estouravam para dentro, e símbolos antigos começaram a se acender por todas as paredes do sanatório, como se estivessem queimando com fogo invisível.
A escuridão os perseguia como um animal faminto. Mas eles ainda respiravam.
Pelo menos por enquanto.
Indra e Ben desceram os corredores escuros do sanatório em disparada, enquanto atrás deles a criatura urrava como um trovão vivo. O som de garras arranhando o chão ecoava pelas paredes, misturado ao estilhaçar de vidro e o ranger enferrujado das portas que se batiam com violência.
A cada passo, a estrutura do prédio tremia, soltando pedaços de reboco e tábuas podres do teto. A atmosfera era sufocante — um cheiro de queimado, enxofre e podridão impregnava o ar, ardendo nas narinas dos dois sobreviventes.
Eles chegaram à escadaria principal, mas a primeira pancada vinda de cima quebrou parte dos degraus, quase os lançando para trás.
"SEGURA!" gritou Indra, agarrando Ben pela mochila e impedindo-o de cair no vão.
A luz de suas lanternas tremia enquanto desciam, os feixes iluminando apenas flashes de corredores ainda mais sombrios. Em certo momento, algo correu na frente deles — uma figura translúcida e humanoide, que atravessou a parede com um grito sufocado. Os dois quase tropeçaram de susto.
"O que foi ISSO?" gritou Ben, a voz rouca de puro pânico.
"Fantasmas, ou sei lá! CONTINUA!"
No último lance de escadas, um bando de corvos emergiu das trevas, voando em revoada pela escadaria como um redemoinho de asas negras. O som ensurdecedor das aves parecia zombar de cada passo deles.
Finalmente, eles alcançaram o andar térreo. A grande porta de entrada do sanatório estava escancarada, mas algo impedia que a escuridão do lado de fora se tornasse menos densa do que a do interior. Ainda assim, eles não hesitaram.
Quando pisaram para fora, o vento cortante da noite os atingiu como facas de gelo. Lá fora, as árvores balançavam violentamente, como se quisessem arrancar as próprias raízes. Um trovão iluminou o céu, revelando por um segundo a silhueta da criatura parada na porta atrás deles — mais alta, mais deformada, como se estivesse crescendo a cada segundo que passava.
"O CARRO!" gritou Indra, apontando para onde os veículos haviam sido deixados.
Ben e ele correram pela trilha lamacenta. Mas à medida que se aproximavam, perceberam que os carros estavam completamente destruídos: os para-brisas estilhaçados, portas retorcidas, pneus murchos — como se algo enorme os tivesse esmagado.
"NÃO!" — urrou Ben, desesperado.
A floresta ao redor estava viva de sons: galhos se quebrando sozinhos, vultos passando correndo entre as árvores, sussurros incompreensíveis ecoando no vento. A sensação era de que algo — ou muitas coisas — estavam se aproximando rapidamente.
A floresta parecia pulsar com uma vida distorcida. Cada galho seco estalando sob os pés de Indra e Ben era uma batida do tambor da morte. O ar estava denso, saturado de um cheiro metálico — sangue, talvez. Ou algo pior.
Atrás deles, o som rastejante se aproximava.
Não um rugido.
Não um grito.
Apenas o arrastar constante de garras sobre folhas, o estalo de galhos quebrando com uma precisão doentia. E às vezes… um sussurro abafado, que parecia vir de dentro da própria mente.
"Não olha pra trás!"— gritou Ben, ofegante.
Mas Indra olhou.
Uma silhueta — magra demais, alongada demais. O corpo retorcido de uma criatura impossível, movendo-se rápido demais entre as árvores, como uma sombra projetada por um fogo que não existia. Os olhos... dois buracos rubros, acesos no escuro, fixos neles.
"Por aqui!" gritou, puxando Ben por um barranco coberto de raízes.
Eles escorregaram, caíram, rolaram por folhas e terra úmida. A criatura gritou — um som que parecia o som de alguém se afogando em cinzas.
Lá em cima, como uma linha de salvação no caos, um fio grosso de aço — possivelmente parte de uma antiga instalação elétrica — atravessava de uma árvore à encosta acima, em direção ao acampamento.
"Se a gente conseguir escalar aquilo... talvez consiga voltar pra clareira!"
Disse Indra, engolindo a dor de um corte no braço.
A criatura estava cada vez mais próxima. Agora eles sentiam a presença dela, como uma febre queimando na nuca.
Ben agarrou o fio.
"Vai, vai! Sobe primeiro!"
"Não, você vai!" gritou Indra, empurrando-o.
Ben subiu rápido, como se a vida dependesse disso — porque dependia. Indra o seguiu logo atrás. A criatura chegou à base do barranco, olhando para cima.
Ela se ergueu nas patas traseiras, revelando ossos expostos e músculos pulsantes. As garras afundaram na terra úmida.
Ela estava prestes a saltar.
Indra chutou um galho solto, atingindo-a bem no rosto. Foi o suficiente para atrasá-la por um segundo — um segundo precioso.
Ben alcançou o topo da encosta iluminada pela luz pálida da lua cheia.
"Pega minha mão!" ele estendeu o braço.
Indra agarrou e foi puxado com força. No instante em que seus pés deixaram o fio e tocaram o chão da clareira, a luz da lua os banhou.
A criatura emergiu logo depois... e parou.
No limiar da escuridão da mata, ela se retorceu. Sua pele começou a chiar, e fumaça subiu das articulações. A criatura rugiu de frustração, girando para trás, sumindo de volta nas sombras, como se tivesse sido queimada por algo invisível.
Indra caiu de joelhos, arfando. Ben também desabou ao lado dele, o rosto suado e pálido.
"Que... porra... foi aquilo."
Sussurrou Ben, com os olhos arregalados.
"Eu não sei... mas a luz da lua..."
Eles olharam para o céu. A lua cheia brilhava no alto, enorme, silenciosa. Um círculo prateado que parecia ser a única coisa os protegendo daquilo que espreitava nas árvores.
Por um instante, o acampamento parecia um santuário. Cercado por escuridão viva, sim — mas protegido pela frágil lâmina de luz prateada que vinha do céu.
Eles sabiam que estavam seguros. Mas também sabiam que era temporário.
A criatura agora sabia onde eles estavam.
E estava esperando a lua se mover.
A clareira do acampamento parecia um oásis de luz em meio ao mar negro da floresta. A lua cheia pairava alta, seu brilho banhando as barracas e a grama, criando um círculo de segurança. Fora dele, sombras se agitavam, e o som de galhos estalando indicava que a criatura ainda estava lá, rondando, faminta.
Indra caiu de joelhos ao lado de Ben, respirando com dificuldade. Seu antebraço direito estava rasgado, o sangue escorria quente entre seus dedos. Ben, com o rosto parcialmente coberto de sangue vindo de um corte profundo na cabeça, tremia. Ambos abriram seus kits de primeiros socorros com mãos trêmulas.
"F-Fique parado."
Disse Indra, a voz embargada pela dor e adrenalina, enquanto puxava o spray antisséptico do kit e começava a limpar o ferimento de Ben.
O cheiro acre de álcool se misturou ao do sangue e da terra molhada. Ben arfou, apertando os punhos para suportar a ardência. Indra então enfaixou a cabeça do amigo com gaze, amarrando firme.
"Obrigado…" murmurou Ben, com a voz fraca.
"Você… você viu o que ele fez com o Dean, não foi?"
Indra engoliu em seco, enquanto abria seu próprio kit para cuidar do corte no braço. Ele molhou um pano com soro fisiológico, limpou a ferida enquanto rangia os dentes de dor.
"Eu vi." Sua voz saiu quase como um sussurro. "Ottis… ele… ele se transformou em algo. Não era mais humano. E Dean…" A lembrança do amigo sendo despedaçado fez um calafrio percorrer sua espinha.
Ben respirou fundo, segurando as laterais da cabeça como se tentasse manter seus pensamentos no lugar.
"Ele era nosso amigo…" disse Ben, a voz falhando.
"Como isso aconteceu? Como ele virou… aquilo?"
Indra amarrou a faixa ao redor do antebraço, sentindo a dor latejante no corte. Seu olhar vagou pelas árvores ao redor da clareira, onde sombras densas pareciam se mover com vida própria. Em um ponto, olhos amarelos brilharam por um segundo na escuridão, acompanhados de um rosnado baixo.
"Eu não sei, Ben." Indra se forçou a manter a calma." Mas precisamos sair daqui antes que a lua seja coberta. Quando as nuvens passarem, a clareira vai ficar escura… e aquela coisa vai poder nos alcançar."
Os dois olharam para o céu: nuvens densas se aproximavam lentamente, empurradas por uma brisa fria.
"Não podemos ficar aqui parados." Ben tentou se levantar, mas cambaleou. Indra o segurou a tempo.
"Talvez se escalarmos aquelas árvores maiores ali."
Apontou Indra para uma fileira de pinheiros altos na borda da clareira.
"Poderíamos chegar a algum lugar mais alto, onde a criatura não consiga nos seguir."
O som de passos pesados circulava a clareira, ora à esquerda, ora à direita. As sombras se agitavam como se a escuridão estivesse viva. Cada estalo de galho fazia os dois estremecerem.
"Escalar?" Ben olhou para o braço ferido de Indra e para suas próprias pernas trêmulas."Você acha que conseguimos?"
Indra olhou nos olhos do amigo, o medo e a determinação se misturando em seu semblante. Ele então sacou a última bala do revólver e a colocou no tambor, trancando-o com um clique metálico.
"Não temos escolha, Ben. Quando a lua sumir, ou subimos… ou morremos."
Um uivo baixo ecoou além da linha das árvores, arrastando-se como uma promessa de morte. Eles sabiam que o tempo estava acabando.
Enquanto se revezavam para ajudar um ao outro a apertar as bandagens e organizar o que restava de suas mochilas, ambos lançavam olhares ansiosos para a lua, implorando silenciosamente que ela resistisse às nuvens apenas mais um pouco.
A clareira iluminada era sua única salvação — e o relógio da lua estava correndo.