A primeira coisa que Indra sentiu foi o cheiro estéril do álcool. Um bip suave ecoava em algum lugar acima de sua cabeça, sincronizado com as batidas fracas de seu coração. Quando abriu os olhos, a luz branca do teto o cegou por um instante, e ele piscou várias vezes até conseguir distinguir o ambiente: paredes de um branco tão limpo que pareciam brilhar, aparelhos médicos conectados a ele, e uma janela parcialmente coberta por cortinas cinzentas.
Um quarto de hospital. Mas havia algo errado. O ar carregava uma sensação estranha — como se o espaço estivesse… distorcido. Ele tentou se mexer, mas um peso em seus braços o lembrou de sua fraqueza. A última coisa que lembrava era a criatura nas sombras e a corrida desesperada.
"Ah, você acordou." disse uma voz suave, feminina, porém com um tom firme que ecoava como sinos quebrando o silêncio.
Indra se virou com esforço e a viu: parada ao lado da cama, uma mulher alta, pele pálida, cabelos negros como a noite, presos em um rabo de cavalo longo que descia até a cintura. Ela vestia roupas justas de couro negro que mais pareciam uma armadura urbana, repleta de fivelas e detalhes prateados. O detalhe mais chocante, porém, estava atrás dela: uma cauda fina e vermelha, terminando em uma ponta semelhante à de um demônio, balançando preguiçosamente de um lado para o outro.
Seus olhos não eram menos impressionantes — o esquerdo, azul acinzentado como um céu antes da tempestade; o direito, verde esmeralda e brilhante como uma joia. Eles se fixaram nele com intensidade.
Indra respirou fundo, o peito ainda pesado, mas sentiu a força voltar aos poucos, como se algo dentro dele se agitasse. Ele ergueu os olhos para a mulher à sua frente. Agora que conseguia enxergá-la melhor, percebeu que, apesar da aparência sombria, havia uma aura de autoridade e serenidade em seus gestos.
"Meu nome é Sophie Ledger."
Ela disse, inclinando-se levemente, como se apresentasse a alguém digno de respeito.
"Sou uma Capitã da Décima Legião da Sociedade Esotérica."
"Sociedade…" Indra repetiu, ainda confuso.
Sophie assentiu, a cauda balançando atrás dela como um metrônomo.
"A Sociedade Esotérica é a organização que protege o Plano Terreno do que você enfrentou. Somos formados por Paranormais, pessoas como você, capazes de manipular a Energia."
Ela passou a mão sobre o peito dele, e Indra sentiu um calor leve espalhar-se por seu corpo.
"A Energia que você sente agora surgiu porque você despertou como Paranormal. Esse despertar salvou sua vida… mas você ainda está no início. Nem sequer formou um Núcleo Interno: você é apenas um Aprendiz, o primeiro nível entre os Paranormais."
"Aprendiz…" ele murmurou, tentando memorizar.
"Exato." Sophie ergueu a mão e, com um gesto, projetou um holograma etéreo que exibia um símbolo complexo: doze espadas cruzadas ao redor de uma balança.
"A Sociedade é dividida em quatro principais organizações, começando pelas Doze Legiões, cada uma especializada em um aspecto do combate ao sobrenatural: exorcismo, rastreamento, contenção, pesquisa, entre outros."
A imagem se transformou, mostrando um salão grandioso, com pilares de mármore negro e vitrais que deixavam a luz roxa atravessar.
"Acima das Legiões está o Salão da Justiça, onde os julgamentos e as diretrizes da Sociedade são decididos."
Depois, o holograma mostrou um círculo de doze cadeiras de trono, cada uma diferente, ocupadas por figuras imponentes. "No topo está o Alto Conselho, formado pelos Doze Anciãos, responsáveis por governar a Sociedade como um todo."
Por fim, o holograma projetou nove pilares titânicos, elevando-se acima de nuvens escuras, cada um com um símbolo próprio.
"E, acima até do Alto Conselho, existem os Nove Pilares, Paranormais que sustentam a ordem da Sociedade. Eles são lendas vivas. Alguns dizem que nem são mais humanos."
O holograma sumiu quando Sophie fechou a mão. Ela então se aproximou mais de Indra, os olhos dissonantes fixos nos dele.
"A criatura que te atacou…" Ela fez uma pausa, como se avaliasse se ele estava pronto para ouvir.
"…era um Atroz Dormente, o nível mais baixo e fraco dos monstros que existem. Mas não se engane: até mesmo um Atroz Dormente pode matar cem homens comuns em minutos. Você sobreviveu porque despertou a tempo."
Indra engoliu em seco, sentindo um arrepio percorrer-lhe a espinha.
Sophie sorriu levemente, mas era um sorriso frio como gelo. "O mundo mudou para você, Indra. E não há mais volta. A única pergunta agora é: vai aprender a caçar… ou continuar sendo caçado? Se quiser provar que é alguém... lute."
O bip do monitor acelerou junto com o pulso de Indra. Ele respirou fundo, tentando processar tudo, enquanto a sensação de que nada em sua vida voltaria a ser normal se firmava como uma rocha em seu peito.
Indra ficou parado sem reação, sua mente estava muito confusa e perdida em pensamentos.
Sociedade Esotérica? Aprendiz? Atroz Dormente? Que porra é tudo isso?
Sophie ao perceber a confusão de Indra. Se levantou e foi em direção a saída.
Sophie parou diante da porta entreaberta, lançando um último olhar para Indra. O brilho sobrenatural de seus olhos heterocromáticos parecia perfurar sua alma.
"Indra…" ela começou, a voz mais suave do que antes, mas ainda carregada de firmeza. "Não quero que me dê uma resposta agora. Se vai lutar ou não… essa decisão é só sua. Não se precipite."
Indra abriu a boca, mas nenhuma palavra saiu. Ele estava exausto, confuso, dividido entre medo e raiva, esperança e desespero.
"Pense bem."
Disse Sophie, com a frieza de quem já viu muitos caírem. "Voltarei amanhã. Então, espero sua resposta."
Ela virou-se, sua longa cauda demoníaca balançando com leveza enquanto desaparecia no corredor iluminado pela luz pálida do hospital. O som de seus passos foi sumindo até restar apenas o silêncio pesado do quarto.
Indra afundou na cama, as mãos tremendo levemente. O monitor cardíaco ao lado emitia bipes espaçados, marcando cada batida acelerada de seu coração. Ele se sentia como se tudo fosse um sonho, mas a dor em seu corpo provava que era real.
Milhares de pensamentos rodopiavam como furacão em sua mente: a criatura que enfrentou, a Sociedade Esotérica, os Clãs, a energia que agora corria em suas veias. As lembranças do beco, do medo paralisante, do sangue — tudo se misturava em flashes caóticos.
Ele lembrou-se do cheiro de mofo e podridão, do rugido monstruoso, do gosto metálico do pânico. Lembrou-se de como sua vida inteira foi marcada pela impotência, pela sensação de estar sempre à sombra de tudo e todos.
O mundo que ele conhecia havia se despedaçado. A realidade era muito maior, mais cruel, mais sombria do que jamais imaginara.
Indra fechou os olhos, inspirando profundamente. Em meio ao turbilhão, uma chama começou a brilhar — fraca, mas determinada.
Ele pensou nas palavras de Sophie: “Se quiser provar que é alguém… lute.”
Eu vou lutar... murmurou para si mesmo, quase sem som. Seus olhos se abriram, firmes como nunca antes.
“Vou lutar contra o mundo. Contra tudo. Contra todos.”
E naquele instante, sozinho em um quarto de hospital iluminado pela luz fria da madrugada, Indra decidiu que não seria mais um ninguém.
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A luz fria da manhã irrompia pelo quarto quando a porta se abriu. Sophie Ledger entrou, a expressão tão séria quanto no dia anterior, mas com um leve toque de expectativa nos olhos. Sua cauda balançava suavemente enquanto se aproximava da cama onde Indra estava sentado, completamente desperto.
"Então, Indra…" ela começou, sua voz ecoando firme pelo quarto. "Você tomou sua decisão?"
Indra respirou fundo, sentindo o coração bater com força em seu peito. Seu olhar encontrou o dela, sem hesitação. "Tomei." respondeu com convicção.
"Eu… eu vou lutar."
Um canto discreto dos lábios de Sophie se curvou em algo próximo de um sorriso.
"Ótima escolha."
Ela estendeu a mão e, com um movimento elegante, abriu a pesada cortina ao lado da cama.
A luz que invadiu o quarto não era a luz dourada do sol comum — era uma claridade intensa, prateada, que banhou o cômodo com um brilho sobrenatural. Diante dos olhos arregalados de Indra se estendia uma paisagem de tirar o fôlego: estruturas negras, altas e reluzentes, como arranha-céus esculpidos em obsidiana viva, erguiam-se até as nuvens. O céu era de um roxo vibrante, quase elétrico, riscado por nuvens negras como carvão, cada uma carregada com relâmpagos de cores impossíveis — vermelhos, azuis, verdes, todos cintilando como fogos de artifício silenciosos. E no horizonte, um sol prateado queimava o mundo com sua luz fria, como se a própria realidade estivesse prestes a se incendiar.
Indra sentiu a respiração falhar. "O que… é esse lugar?"
"Este é o Outro Lado." disse Sophie, a voz baixa, mas carregada de poder. "Um espelho do nosso mundo. Geograficamente, é idêntico à Terra, mas é selvagem, indomável, cheio de fenômenos impossíveis." — Ela se voltou para ele, olhos brilhando como gemas. "A Sociedade Esotérica fica localizada onde seria a Europa no nosso mundo. E ocupa metade dela, funcionando como um país gigantesco."
Indra piscou, tentando processar.
"A Sociedade é dividida em 27 regiões." — continuou Sophie, andando até a janela para observar junto dele a grandiosidade do cenário. " Cada região é controlada por uma organização ou sociedade secreta, todas subsidiárias à Sociedade Esotérica, mas com hierarquia própria. Elas estão debaixo da asa da Sociedade, mas governam seus territórios de forma independente."
Ela apontou para longe, para onde torres mais altas do que as demais brilhavam como lanças de pura noite.
"A sede da Sociedade Esotérica fica na Capital Imperial, o estado central. É de lá que tudo é coordenado."
Indra arregalou os olhos.
"Os outros 26 estados." prosseguiu Sophie. "são pertencentes a outras organizações. Cada estado leva o nome de um deus mitológico, mais a posição geográfica em que está localizado. Por exemplo, a Igreja Católica controla Zeus Sudeste. Cada estado, por sua vez, é dividido em 10 municípios chamados de Burgos, totalizando 260 Burgos em toda a Sociedade."
Indra balançou a cabeça, atordoado com tanta informação.
"E cada Burgo." — disse ela, como se não fosse nada demais. "tem sete bairros, classificados em ordem crescente de poder aquisitivo: Bairro da Cruz de Ferro, Bairro da Cruz de Cobre, Bairro da Cruz de Bronze, Bairro da Cruz Prateada, Bairro da Cruz Dourada e Bairro da Cruz Diamantina."
O jovem levou a mão à cabeça, massageando as têmporas. "Isso é… é muita coisa."
Sophie soltou um pequeno suspiro.
"Não se preocupe. Você vai aprender tudo isso na Academia Esotérica. — Ela se virou para ele, fitando-o com intensidade. "Lá, você vai entender a Sociedade, o Outro Lado… e o que significa realmente ser um Paranormal."
Indra respirou fundo, ainda com os olhos fixos na paisagem impossível do Outro Lado. Academia Esotérica? — murmurou, quase para si mesmo.
"O que é… a Academia Esotérica?"