Indra e Sophie avançavam pelos intermináveis corredores do hospital. Cada passo ecoava como um presságio: o prédio parecia não ter fim, ramificando-se em alas e quartos que se multiplicavam como labirintos. À primeira vista, tudo lembrava um hospital comum — mas a cada metro percorrido, a fachada de normalidade se desfazia, revelando um lugar onde o impossível era rotina.
As paredes reluziam com painéis translúcidos que pulsavam como corações de cristal, enquanto máquinas de design alienígena emitiram sons suaves, quase como cânticos. Símbolos arcanos e marcas místicas cobriam tetos e rodapés, contorcendo-se lentamente como serpentes vivas — e foi nesse ambiente que Indra começou a perceber: o hospital era um santuário entre a tecnologia do futuro e a magia primordial.
Os médicos que cruzavam seus caminhos vestiam jalecos brancos, mas adornados com brasões de ordens secretas e pingentes de pedra que emitiam brilhos sutis. Suas mãos não apenas manejavam instrumentos cirúrgicos inimagináveis, mas também controlavam fios de energia dourada que se estendiam até os corpos dos pacientes, curando feridas que desafiavam qualquer lógica humana.
Enquanto caminhavam, a realidade se tornava cada vez mais sombria. Indra espiou pela fresta de uma porta e quase recuou: sobre a cama, um homem parecia ter sido mastigado por uma besta colossal — sua pele estava esburacada e manchas negras ferviam como piche, enquanto líquidos viscosos de cores indescritíveis escorriam para poças nauseantes. A vida se esvaía dele de forma grotesca, como se algo o estivesse corroendo de dentro para fora.
Mais adiante, outro quarto revelou um paciente cujo corpo era dominado por crateras esbranquiçadas, lembrando colmeias infectadas. Quando aquelas bolhas explodiram, flores negras, retorcidas como sonhos febris, emergiram — cada pétala tinha dentes, cada espinho parecia uma lâmina. E, de dentro delas, veio um grito agudo que perfurou a mente de Indra, reverberando em seu peito como um eco que devorava sua alma.
Ele sentiu a espinha gelar a cada porta que passavam — já Sophie mantinha uma calma sobrenatural, como se aquilo fosse tão corriqueiro quanto caminhar por um parque. Seus olhos fixos à frente, indiferentes ao horror.
Não demorou para que chegassem à saída. Sophie se posicionou diante da imensa porta de ferro retorcido, com símbolos que pareciam brilhar na penumbra. Ela deslizou para o lado com um movimento silencioso, e Indra entendeu: aquele momento era dele. Com um último suspiro, ele pousou a mão sobre a maçaneta ornamentada, sentindo o frio do metal penetrar seus ossos. Hesitou. O mundo que conhecia terminava ali.
Mas não havia espaço para medo. Ele girou a maçaneta com firmeza — e foi como abrir as cortinas do universo. Uma explosão de luz prateada o cegou por um instante. Quando seus olhos se ajustaram, ele viu.
Diante dele se estendia um céu que parecia uma pintura viva: um sol de prata queimava com chamas roxas que dançavam como véus, iluminando nuvens negras cravejadas de relâmpagos multicoloridos — alguns deles com cores que a mente humana não deveria ser capaz de perceber. O calor frio que vinha daquele astro era tão antinatural que parecia distorcer a própria realidade.
Ao lado dele, Sophie também admirava a visão, seus lábios curvados em um sorriso enigmático que desapareceu quase tão rápido quanto surgiu — como se a cidade diante deles ainda fosse capaz de surpreender até mesmo alguém como ela.
Indra foi arrancado do êxtase quando sentiu a mão dela entrelaçando-se à sua. Então, pela primeira vez, ele percebeu realmente quem estava ao seu lado: Sophie era mais do que bela — ela era arrebatadora. Seus cabelos negros caíam como véu de tinta, seus olhos de uma cor sólida e infinita guardavam segredos antigos, e sua pele branca como mármore irradiava um magnetismo etéreo. Cada linha de seu corpo parecia esculpida para inspirar desejo e temor em igual medida.
Quando ele se deu conta de que a analisava como um predador fascinado, desviou o olhar, envergonhado — mas não antes de ver um sorriso quase imperceptível brincar nos lábios dela. Sophie sabia muito bem o efeito que causava.
Em busca de alívio, Indra voltou os olhos para a cidade. E ali, a verdadeira natureza do Outro Lado se revelava: arranha-céus de obsidiana erguiam-se como lanças negras contra o céu púrpura. Cada edifício, embora vitoriano em detalhes, brilhava com letreiros de néon arcano, como se Tóquio e um castelo gótico tivessem tido um filho sombrio e magnífico.
As ruas eram pavimentadas com blocos de arenito vermelho, montados em padrões que desafiavam a simetria — ao mesmo tempo caóticos e harmoniosos, como um mosaico vivo. As calçadas, esculpidas em marfim tão puro que refletia a luz como neve sólida, serpenteavam entre edifícios e praças.
Entre mansões que pareciam templos de deuses esquecidos, jardins floriam com espécies de plantas que jamais existiram na Terra — algumas brilhavam, outras sussurravam em línguas estranhas quando o vento passava.
Enquanto exploravam o Burgo Real, Sophie guiava Indra em silêncio, como quem apresenta um reino a um príncipe recém-chegado. E que reino: pelas ruas largas, figuras trajadas em mantos arcanos caminhavam lado a lado com cavaleiros em armaduras orgânicas, suas auras coloridas tremeluzindo como fogos-fátuos. De tempos em tempos, carruagens levitavam suavemente sobre o solo, puxadas por criaturas de pesadelos ou sonhos.
Indra percebeu bairros com atmosferas distintas: a Cruz de Ferro, onde as fachadas eram austeras, cobertas de inscrições antigas e cheias de rachaduras, exalava o peso de séculos; a Cruz Diamantina, em contraste, cintilava com prédios que refletiam o céu como espelhos negros, símbolos vivos do poder e da riqueza.
Mercados se estendiam sob arcos esculpidos com gárgulas e símbolos demoníacos, onde vendedores ofereciam relíquias amaldiçoadas, pergaminhos que tremulavam como se respirassem, e poções que mudavam de cor como marés lunares. Pequenas criaturas demoníacas corriam de um lado para outro, carregando sacolas ou escalando bancas com agilidade sobrenatural.
Entre as multidões, patrulhas de guardas da Sociedade marchavam em silêncio, trajando mantos de chumbo que balançavam como sombras líquidas, armados com lanças que brilhavam com runas vivas e espadas que mudavam de forma em suas mãos.
Painéis de cristal flutuavam sobre as ruas, mostrando anúncios em línguas antigas: “MATRÍCULAS ABERTAS PARA A ACADEMIA ESOTÉRICA”, piscava um deles, enquanto outro exibia a imagem de uma criatura colossal sendo derrotada por magos e cavaleiros — propaganda para recrutar novos heróis.
A cidade parecia viva: quarteirões mudavam de lugar sutilmente, como se respirassem; becos surgiam onde não havia nada segundos antes; e portões arcanos marcavam os limites dos bairros, cada um ostentando nomes que evocavam poder ancestral: “Benedictus”, “Urbanus”, “Celestinus” — lembranças de eras em que fé e magia andavam lado a lado.
No fundo de cada viela, sombras observavam, olhos brilhando em tons sobrenaturais; e ao longe, sinos de cristal soavam, emitindo notas que ressoavam no coração como profecias.
Indra caminhava, o coração em um turbilhão. Aquele não era apenas um lugar — era um mundo novo, forjado em segredos, sonhos e terrores. E ali, no coração da Sociedade Esotérica, ele entendia: só sobreviveria se fosse capaz de abraçar o impossível — e lutar com cada fibra de sua alma.
---
As portas do restaurante se abriram como se reconhecessem Sophie Ledger, deslizando para dentro da parede com um sussurro arcano. Indra seguiu a mulher de passos contidos, ainda estranhando o som ecoante de seus próprios pés sobre o chão de mármore negro. O lugar era vasto, iluminado por globos de vidro que flutuavam como bolhas douradas, emitindo uma luz suave e misteriosa.
As mesas, feitas de madeira fossilizada, tinham desenhos em espirais que pareciam se mover sutilmente quando ele não estava olhando diretamente. Pendurados no teto, candelabros de ossos polidos sustentavam velas cujas chamas mudavam de cor a cada segundo, do roxo profundo ao verde espectral.
"Esse restaurante é famoso por servir pratos de todas as regiões da Sociedade Esotérica." disse Sophie, acomodando-se em uma cadeira esculpida em pedra negra com detalhes de prata. "Há coisas aqui que você não encontraria em lugar algum do nosso mundo."
Indra sentou-se à sua frente, fascinado. Logo, garções vestindo roupas que lembravam mordomos vitorianos, mas com olhos como os de répteis, aproximaram-se e depositaram cardápios impressos em pele de algum animal desconhecido. Quando ele abriu, o cardápio se reorganizou, adaptando-se à sua compreensão, exibindo pratos com nomes estranhos como Fígado de Quimera Grelhado, Risoto de Musgo do Abismo, Sopa de Névoa Estelar.
Indra apontou, hesitante, para algo que parecia normal: Estufado de Pássaro de Pedra. Sophie arqueou uma sobrancelha com um leve sorriso.
"Você vai adorar." disse, pedindo o mesmo.
Enquanto aguardavam, o restaurante se enchia de sons suaves: uma melodia tocada por músicos com máscaras de porcelana e instrumentos que flutuavam à sua volta, produzindo harmonias dissonantes e etéreas.
Quando os pratos chegaram, exalando um aroma terroso e exótico, Indra deu a primeira garfada e se surpreendeu: a carne tinha uma textura firme, mas suculenta, e estourava com sabores que ele nunca provara. Um calor suave subiu pelo peito, como se a comida tivesse vida própria. Ele olhou para Sophie, com os olhos brilhando de fascínio.
"Eu... isso é incrível." balbuciou, limpando a boca com o guardanapo que parecia feito de teia de aranha prateada.
Sophie o observava atentamente. "Indra, você entende que o que aconteceu com você não é normal? Um Aprendiz..." — ela parou para beber algo que lembrava vinho líquido, mas pulsava em roxo. "Um Aprendiz nunca derrotaria um Atroz Dormente. É praticamente impossível. Você foi capaz de acessar sua Energia de forma instintiva, o que é raro."
Ela recostou-se na cadeira, deixando a cauda demoníaca balançar de leve atrás dela.
"Quando um humano desperta a Energia, ele se torna um Aprendiz. Depois, precisa aprender a direcionar a Energia para formar Veias Mágicas pelo corpo. Elas são como canais que permitem controlar a Energia com precisão, fazendo isso você se torna um Despertado." — Sophie traçou uma linha imaginária do ombro ao coração. "Só quando essas Veias estão firmes, você consegue condensar sua Energia em um Núcleo Interno, que se forma no coração. Esse é o momento em que você se torna um Graduado."
Indra franziu a testa, absorvendo cada palavra enquanto mastigava outra garfada.
"Então... só depois de se tornar Graduado que alguém pode... atravessar para o Outro Lado?" — perguntou, a voz carregada de curiosidade e ansiedade.
Sophie assentiu. "Exatamente. Humanos precisam de um Núcleo Interno para romper o Véu e transitar entre nosso mundo e o Outro Lado. Mas as Criaturas do Outro Lado já nascem Graduadas." — Ela fez uma pausa, os olhos heterocrômicos brilhando sob a luz mutante. "E algumas delas podem ter até dez Núcleos Internos. Cada Núcleo as coloca em uma classificação superior, e um Dormente, como aquele que você matou, é o mais fraco, equivalente a uma criatura com apenas um Núcleo."
Indra segurou o garfo no ar, a mente fervilhando. "Então... normalmente só alguém que já é Graduado poderia derrotar um Dormente."
"Sim. Mas você conseguiu sem sequer ter formado Veias Mágicas ainda." — Sophie inclinou-se, a voz baixa e intensa. "Você tem talento, Indra. Eu acredito que em apenas um mês você será capaz de formar seu Núcleo Interno. Com isso, poderá passar no Exame Paranormal e se tornar alguém realmente capaz de lutar de igual para igual com os herdeiros dos Clãs."
Indra engoliu em seco, desviando o olhar para as janelas do restaurante. Do outro lado do vidro negro, o céu roxo vibrava com relâmpagos multicoloridos, como se celebrasse sua decisão de lutar.
Silêncio caiu sobre a mesa, interrompido apenas pelo som dos talheres e da música etérea. Finalmente, Indra ergueu os olhos para Sophie.
"Sophie..." — começou, hesitante, a mente confusa e o coração pesado. "Por que você está me ajudando tanto? Por que... eu?"
Sophie o fitou longamente, os olhos diferentes como o dia e a noite, mas tão intensos que ele quase recuou. Seu rosto ficou sério, indecifrável.
"Você saberá quando chegar a hora." — respondeu, enigmática. Então levou a taça aos lábios e brindou em silêncio com ele, o tilintar ecoando como um presságio.
Os ponteiros do destino estão começando a se mover.