O grande portão da Academia Esotérica se ergueu diante de Indra assim que ele desceu os degraus de pedra. O sino que marcava o fim das aulas ecoava pelas torres e corredores, reverberando como o cântico de uma catedral ancestral. O céu, tão negro quanto a tinta mais densa, era rasgado apenas pela presença solitária da lua — aquela mesma lua azul-clara, fria como gelo, que lançava sua luz espectral sobre as ruas e prédios da Sociedade Esotérica.
Indra respirou fundo. O ar noturno do Outro Lado tinha um cheiro metálico sutil, como se sempre pairasse uma tempestade próxima. Ele fechou os olhos por um instante, absorvendo o frescor da noite, antes de seguir até a saída principal. Foi então que a silhueta familiar de Sophie apareceu parada perto de uma das colunas do portão. Seus cabelos longos e negros como tinta caíam como uma cortina de seda sobre os ombros, reluzindo suavemente sob o luar. E seus olhos… um deles de um azul acinzentado profundo como céu tempestuoso, o outro de um verde esmeralda tão vívido quanto uma joia viva. As duas cores faziam seu olhar parecer ainda mais hipnotizante.
"Você demorou, Indra." — disse ela com um leve sorriso, que iluminava ainda mais a diferença marcante entre seus olhos. "Como foram as aulas?"
"Melhor do que eu esperava." — respondeu ele, caminhando até ela. "Carl é… rigoroso, mas sinto que realmente quer me ajudar."
Sophie assentiu, começando a andar ao lado dele pelas ruas iluminadas apenas pela lua fria. O céu púrpura do Outro Lado, normalmente riscado por relâmpagos, estava estranho naquela noite: nenhuma tempestade, apenas a escuridão sólida, pesada, e a presença colossal da lua azulada com a sombra que dormia em seu interior.
Enquanto andavam, Indra notou algo no horizonte que nunca havia reparado antes, parcialmente escondido pelas construções mais baixas da Sociedade: uma torre branca, alta, erguendo-se até onde a vista conseguia alcançar. Ela parecia ter sido esculpida em mármore puro, reluzindo com um brilho leitoso sob a lua. Gravuras e detalhes delicados se espalhavam por toda sua superfície, representando batalhas épicas, símbolos arcanos e cenas que pareciam tão antigas quanto o próprio Outro Lado.
"Sophie… o que é aquela torre?" — perguntou ele, apontando discretamente.
Sophie seguiu seu olhar e sorriu levemente, os reflexos de seus olhos bicolores faiscando como se guardassem dois mundos diferentes. "Aquela é a Torre dos Heróis. Um monumento sagrado para nós. É onde os maiores Paranormais da história da Sociedade Esotérica são eternizados. Suas conquistas estão gravadas nas paredes da torre, para que todo o nosso povo se lembre de quem abriu caminho para nós."
As palavras de Sophie fizeram algo se mover dentro da lua — a sombra colossal parecia contorcer-se por um momento, como se o feto adormecido tivesse reagido à menção da Torre dos Heróis. Indra sentiu um calafrio, mas não desviou o olhar da torre.
"Por que construir algo assim?" — questionou ele, fascinado. "Foi ideia dos Nove Pilares?"
"Em parte." — disse Sophie, com a voz mais baixa, como se estivesse contando um segredo. "Ela foi inspirada na Torre de Marfim, um lugar lendário do Reino dos Fenômenos. Há séculos, alguns humanos da Sociedade Esotérica se desvincularam e foram viver no Reino dos Fenômenos. Eles se tornaram o que chamamos de Povo do Outro Lado."
Indra franziu a testa, absorvendo cada palavra.
"Existem muitas regiões onde o Povo do Outro Lado se estabeleceu." — continuou Sophie. "Mas nenhuma é tão famosa ou temida quanto a Torre de Marfim. É um lugar onde dizem que as almas dos Paranormais mais poderosos do Povo do Outro Lado se reúnem para proteger o segredo no topo da torre. Ninguém jamais conseguiu alcançar o seu cume. Acredita-se que quem descobrisse esse segredo poderia moldar a realidade do Outro Lado à sua vontade."
Ela fez uma pausa, e seus olhos — azul acinzentado e verde esmeralda — brilharam à luz fria da lua, quase como se refletissem o próprio céu noturno.
"Séculos atrás, os Nove Pilares decidiram erguer nossa própria Torre de Marfim, para provar que a Sociedade também tinha guerreiros excepcionais. Assim nasceu a Torre dos Heróis." — concluiu, com uma ponta de orgulho na voz.
Enquanto falava, a sombra na lua mexeu-se de novo, quase imperceptível, como se a própria noite escutasse a história.
Indra não conseguia desgrudar os olhos do horizonte, sentindo seu coração bater mais rápido. Aquela revelação colocava uma nova perspectiva sobre tudo o que ele aprendera até então. A ideia de Paranormais que escolheram viver além do Véu, de almas protetoras guardando segredos capazes de alterar o Outro Lado… tudo parecia tão vasto, tão perigoso e ao mesmo tempo tão fascinante.
Continuaram caminhando, e pouco depois passaram por um amplo espaço iluminado por lanternas etéreas que flutuavam no ar como pequenos sóis azulados. Barracas organizadas em fileiras exibiam produtos de todo tipo: livros arcanos, armas brilhando com runas, frascos de poções que borbulhavam com cores impossíveis, armaduras forjadas em materiais desconhecidos e até frutas de tons luminescentes.
O mercado a céu aberto fervilhava com vendedores, compradores e Paranormais de diversas aparências, cada um mais exótico que o outro. O cheiro de especiarias, óleos e fumaças doces pairava no ar.
Indra parou, intrigado. Seus olhos percorreram cada detalhe das barracas, absorvendo as cores, sons e aromas. Ele virou-se para Sophie, que sorria ao vê-lo tão fascinado, seus cabelos negros como tinta balançando suavemente com a brisa fria da noite, e seus olhos bicolores refletindo as luzes do mercado como um espelho de mundos.
"Vamos entrar?" — disse ela, como quem sabe que a resposta será “sim”.
Indra assentiu, o coração batendo rápido não apenas pela Torre ou pelo mercado, mas pela sensação de que, finalmente, estava mergulhando de cabeça no mundo que sempre existira além do Véu — e que agora era seu.
A sombra dentro da lua, acima deles, parecia se contorcer mais uma vez. Como se observasse cada passo que eles davam.
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A brisa fria soprava pelas ruas da Sociedade Esotérica enquanto Sophie conduzia Indra pelos corredores iluminados pelas lanternas azuladas do mercado a céu aberto. O ambiente pulsava com murmúrios, sussurros e o tilintar de moedas arcanas trocando de mãos. As luzes etéreas faziam o ar cintilar, projetando sombras que dançavam como espectros pelas barracas dispostas em longas fileiras.
"Este é o Mercado da Noite." — disse Sophie, a voz suave, mas carregada de significado. Seus olhos bicolores — um azul acinzentado profundo e outro verde esmeralda luminoso — refletiam as luzes fantasmagóricas do lugar. "Ele não é ilegal… mas apenas existe sob o véu da noite. É aqui que se encontra tudo aquilo que não se ousa vender à luz do dia. Coisas raras, perigosas ou de origem… questionável."
Indra caminhava ao lado dela, os olhos arregalados. Seu coração batia mais rápido conforme avançava pelo corredor de barracas, onde vendedores de aparência excêntrica gritavam suas ofertas em línguas estranhas, muitas delas nem mesmo humanas. Sentia o cheiro de especiarias picantes se misturar com aromas doces e notas metálicas que lembravam sangue fresco.
"E o que exatamente eles vendem aqui?" — perguntou Indra, olhando para uma barraca onde frascos cheios de líquidos que brilhavam em tons de púrpura e esmeralda borbulhavam sozinhos.
Sophie sorriu, andando sem pressa enquanto mostrava o que havia ao redor:
"Itens amaldiçoados…" — disse, apontando para um estande onde espadas negras exalavam uma fumaça escura que parecia sussurrar. "Espécimes vivos de diabretes e outras criaturas menores do Reino dos Fenômenos…" — indicou uma gaiola onde pequenos seres de pele acinzentada, olhos escarlates e chifres retorcidos se debatendo em silêncio, como se o som deles fosse sugado pelo próprio ar.
Indra engoliu em seco, maravilhado e apreensivo ao mesmo tempo.
"Ali." — Sophie continuou, apontando discretamente. "vendem Pílulas de Aumento de Energia. Podem permitir a um Paranormal recuperar rapidamente suas forças… mas têm efeitos colaterais graves se usadas em excesso."
Enquanto caminhavam, Indra notava estandes que exibiam armaduras de couro costuradas com fios de prata, punhais que pareciam beber a luz ao redor, e livros encadernados com peles de criaturas que ele preferia não identificar. Em alguns momentos, eles passavam por barracas onde vendedores faziam negócios em voz baixa, olhando de esguelha como ratos desconfiados. Havia também expositores de amuletos que pulsavam como corações vivos, dando a impressão de que emitiam um lamento constante.
O fascínio de Indra só crescia, ainda que misturado a um calafrio constante. O Mercado da Noite era um espetáculo de maravilhas e horrores, um lugar que deixava claro que a linha entre o extraordinário e o grotesco era tão tênue quanto a neblina que pairava sob as lanternas flutuantes.
Foi então que Sophie parou subitamente em frente a uma barraca em particular. O vendedor ali se assemelhava a um demônio corpulento, com traços grotescos de porco: pele grossa e rosada, presas curvadas saindo da boca, e pequenos olhos amarelados brilhando de malícia. Ele se inclinou sobre o balcão de madeira escura, exibindo dentes amarelados num sorriso que mais parecia um aviso.
"Uma Pílula de Nutrição da Alma, por favor." — pediu Sophie, sua voz baixa e calma.
O vendedor-demoníaco bufou como um javali, revirando uma caixa forrada de veludo negro até retirar uma pequena pílula translúcida, que emitia um brilho esbranquiçado suave, quase como uma chama viva.
Indra, que observava com atenção crescente, não conseguiu conter a pergunta quando Sophie guardou cuidadosamente a pílula em um pequeno estojo metálico. "O que é exatamente isso?"
Sophie o olhou de soslaio, seus olhos bicolores faiscando sob as lanternas azuladas. "Eu te explico quando chegarmos em casa. Agora não é o momento…." — disse, seu tom firme, mas suave o suficiente para não parecer uma repreensão. "É melhor voltarmos. Já vimos mais do que o suficiente por hoje."
Indra hesitou. Seus olhos varreram o Mercado da Noite, desejando explorar cada canto, descobrir mais sobre as coisas que o Outro Lado tinha a oferecer. Mas algo na expressão de Sophie — algo entre seriedade e preocupação — o convenceu a obedecer. Ele assentiu, ainda que relutante.
Enquanto se afastavam, o Mercado da Noite parecia ainda mais vivo do que antes: as vozes ecoavam, risos sombrios se espalhavam pelo ar, e sombras dançavam pelas paredes das barracas como se tivessem vontade própria. A lua azul, tão fria e distante, pairava sobre eles com a sombra colossal em seu interior — mas agora, enquanto se dirigiam para casa, essa sombra se retorcia violentamente, como se estivesse respondendo ao que haviam acabado de presenciar.
Um calafrio percorreu a espinha de Indra. Havia algo naquela noite — algo na lua, na torre distante, nas barracas do mercado — que sussurrava promessas sombrias e perigos invisíveis. E, mesmo assim, uma chama de excitação queimava em seu peito: a sensação de que seu destino estava apenas começando a se desenrolar.
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Quando Indra e Sophie chegaram à casa silenciosa, a lua fria ainda lançava sua luz pálida através das janelas, pintando o chão com reflexos azulados. O ar noturno tinha um cheiro fresco, mas havia também algo reconfortante na escuridão acolhedora do lar. Sophie largou as chaves sobre a mesinha da entrada e virou-se para Indra, seu olhar bicolor — um olho azul acinzentado e o outro verde esmeralda — faiscando sob a penumbra.
"Vou tomar um banho primeiro." — disse ela, a voz calma. "Depois desço para explicar sobre a Pílula de Nutrição da Alma… e outras coisas que acabei esquecendo."
Ela subiu as escadas, o som de seus passos ecoando levemente. Indra, por sua vez, dirigiu-se à cozinha. Olhou em volta, abrindo armários e vasculhando a despensa. Lembrando-se de que as aulas iam das 13h às 19h — e considerando o tempo que passaram no Mercado da Noite —, era provável que Sophie não tivesse jantado. Ele decidiu preparar algo para ambos.
Colocando uma panela no fogo, misturou ingredientes que encontrou: arroz, alguns legumes picados, tiras de carne temperadas, um toque de especiarias que encontrou em frascos misteriosos mas que, ao cheirar, pareciam deliciosas. Ele mexia a comida com cuidado, deixando o aroma se espalhar pela casa. Quando terminou, experimentou uma colher: surpreendentemente, o resultado era saboroso, equilibrado e reconfortante.
Enquanto a comida repousava, mantendo-se quente, Indra arrumou a mesa e sentou-se, aguardando Sophie. Não demorou muito para ouvi-la descendo as escadas. Seus cabelos pretos como tinta estavam ainda úmidos, e ela trajava o mesmo roupão preto da noite anterior — mas desta vez ele estava levemente desamarrado, revelando parte de sua clavícula e um vislumbre de pele abaixo, como se tivesse sido proposital… ou apenas fruto de descuido. Sophie também trazia um objeto no pulso, parecido com um smartwatch, e um anel de metal brilhante em outra mão.
Ao chegar à cozinha, Sophie parou por um momento, inalando profundamente o cheiro do jantar que Indra havia preparado. Um sorriso espontâneo, quase infantil, iluminou seu rosto.
"Isso cheira… maravilhoso." — elogiou ela, aproximando-se para ver a comida fumegante. "Você realmente me surpreende, Indra."
Eles se sentaram um de frente para o outro, e o clima que se formou durante o jantar era confortável e íntimo. A cada garfada, Sophie soltava elogios sinceros — dizia que não comia algo tão bom havia tempos. Indra sentia seu peito aquecer a cada sorriso que recebia dela, e por um momento esqueceu-se das sombras que se contorciam na lua lá fora.
Quando terminaram de comer, Sophie se levantou, colocando cuidadosamente o smartwatch e o anel sobre a mesa. Ela olhou para Indra com seriedade, mas também com um brilho de entusiasmo no olhar bicolor.
"Vamos começar." — disse, pegando o smartwatch. "Este é igual ao que eu estava usando no hospital. É padrão para quem começa a atuar na Sociedade Esotérica. Ele vai ser seu companheiro inseparável daqui em diante."
Ela entregou o smartwatch a Indra, que o prendeu em seu pulso esquerdo, ajustando-o acima de seu protetor de tecido preto e junto de sua fita metálica estilosa. O smartwatch se ativou, projetando imediatamente um holograma retangular acima do pulso, do tamanho de um tablet, emitindo uma suave luz azulada que iluminava seus rostos.
"Ele tem três funções principais." — explicou Sophie, apontando para o holograma. "Primeiro, o Grimório Esotérico. Pense nele como a internet do Outro Lado. É um enorme banco de dados, onde você pode pesquisar informações de todos os tipos: técnicas, itens, criaturas, mapas das Zonas, teorias… também é possível comprar ou encomendar praticamente qualquer coisa, de pílulas e armas a grimórios e contratos de serviço com outros Paranormais."
Indra passava os dedos pelo holograma, fascinado. Os menus se desdobravam em subcategorias quase infinitas.
"A segunda função é a Rede Esotérica." — continuou Sophie, tocando em outro ícone. "É como uma grande rede social integrada. Tem seções para vídeos longos e curtos, fotos, mensagens públicas e privadas. Você pode compartilhar seu cotidiano, fazer marketing de seus serviços, ou apenas acompanhar o que os outros Paranormais estão fazendo." — Ela pegou seu próprio smartwatch e em poucos toques passou seu contato para Indra. "Pronto, agora somos amigos na Rede Esotérica."
Indra sorriu, enquanto uma notificação discreta confirmava a amizade na tela holográfica.
"E por último." — disse Sophie, mudando para outro ícone. "A Gazeta Esotérica. É o principal portal de notícias da Sociedade Esotérica. Tudo que acontece de relevante é publicado lá, seja em reportagens em vídeo ou matérias escritas. É o meio mais confiável para se manter atualizado."
Sophie então pegou o anel de metal que deixara sobre a mesa, mostrando-o para Indra. O objeto parecia simples, mas reluzia com sutis reflexos místicos.
"Isso é um Anel Dimensional, um item de armazenamento interespacial." — explicou. "Dentro dele existe um espaço que funciona como um pequeno cofre portátil. Você pode guardar ou retirar itens quase instantaneamente, usando sua Energia. Quanto mais refinado for o seu controle de Energia, mais rápido e eficiente será o uso do anel."
Indra pegou o anel, examinando-o de perto. Seu coração acelerou ao imaginar tudo que poderia guardar ali — armas, grimórios, itens de cura, ou mesmo lembranças pessoais.
Sophie sorriu suavemente, apoiando o cotovelo na mesa, os olhos bicolores fixos nos dele. "Com essas ferramentas, você já está um passo mais preparado para sobreviver ao que está por vir, Indra."
E assim, com a lua ainda brilhando do lado de fora — e a sombra em seu interior contorcendo-se como se reagisse à noite cheia de revelações — Indra sentiu, pela primeira vez, que realmente começava a trilhar o caminho que poderia levá-lo a se tornar um verdadeiro Paranormal.