A cozinha da casa de Sophie estava mergulhada em uma calma dourada, iluminada apenas pela luz suave que escapava das luminárias flutuantes no teto — pequenas esferas de cristal que se acendiam ao toque da presença. O jantar havia sido terminado há pouco, e os pratos descansavam limpos sobre a pia. Indra ainda segurava algumas notas esotéricas nas mãos, admirando o brilho suave do carimbo carmesim da Sociedade Esotérica, até que a voz de Sophie o trouxe de volta à realidade.
"Agora que você entendeu o sistema monetário, é hora de falarmos da outra coisa que tiramos do Anel Dimensional." — ela disse, pegando a pequena pílula translúcida sobre a mesa.
Ela segurou a cápsula como quem segura uma relíquia rara. A pílula era de um branco leitosa, quase perolado, com uma leve névoa girando dentro dela, como se uma essência espiritual estivesse presa ali, suspensa no tempo.
"Essa aqui." — começou Sophie, fitando o objeto. "é uma Pílula de Nutrição da Alma. Como o nome sugere, ela serve para alimentar a sua alma. Não de forma metafórica, mas real. Ela fortalece diretamente sua energia, ajuda a nutrir o seu Núcleo Interno e acelera o seu crescimento como Paranormal."
Indra a observava com atenção, os olhos ainda brilhando de fascínio pela recente revelação de que ele era capaz de manipular energia e acessar espaços interdimensionais com um simples anel. Agora, porém, ele percebia que as camadas do Outro Lado se tornavam mais complexas a cada nova descoberta.
"E isso aqui é algo comum?" — ele perguntou.
"Sim e não." — disse Sophie, girando a pílula entre os dedos. "É bastante usada, especialmente por iniciantes como você. Mas o processo de fabricação é extremamente refinado. E só tem uma origem confiável: o Clã Ye."
Indra franziu o cenho.
"Clã Ye?"
"Um dos Dez Clãs Médios da Sociedade Esotérica." — explicou ela. "Clãs que estão abaixo apenas dos Nove Grandes Clãs, e muito acima dos clãs menores. O Clã Ye é respeitado e temido porque seus membros nasceram com uma afinidade rara: o Espírito Primordial do atributo Alma."
"Espírito Primordial...?" — Indra a interrompeu, ainda digerindo as palavras.
Sophie ergueu a mão com um pequeno sorriso, como quem antecipava a pergunta.
"Calma. Isso vai ser assunto para suas aulas com o Professor Carl. Você vai aprender sobre isso no primeiro ciclo de Doutrina da Alma e Estrutura Espiritual. Por agora, só saiba que alguns Paranormais nascem com vínculos espirituais muito antigos, profundos, quase místicos. Eles chamam isso de Espírito Primordial, uma espécie de raiz ancestral que molda a forma como a energia deles interage com o mundo."
Indra assentiu lentamente, armazenando aquela informação para mais tarde.
Sophie então se levantou e foi até uma pequena prateleira acima da pia, retirando um pequeno frasco de vidro azul com tampa metálica. Voltando para a mesa, ela sentou-se em frente a Indra e colocou o frasco ao lado da pílula.
"Mas não adianta engolir a pílula de qualquer jeito." — disse, encarando-o com seriedade. "É preciso ter uma Técnica de Refinamento da Alma. Sem ela, a maior parte da energia da pílula se dispersa, ou pior: sobrecarrega o Núcleo Interno e pode danificar sua estrutura espiritual."
Indra se endireitou na cadeira, agora totalmente absorvido pela conversa.
"Técnicas de Refinamento... são como feitiços?"
"Não exatamente. São métodos esotéricos, criados ao longo dos séculos, para canalizar a energia da pílula diretamente para o seu núcleo. Algumas dessas técnicas são públicas e ensinadas nas academias, mas...." — ela fez uma pausa, olhando diretamente em seus olhos. "as melhores são as que pertencem aos Clãs."
"As chamadas “Técnicas de Linhagem”?" — deduziu Indra.
Ele havia aprendido isso com o Professor Carl.
Sophie sorriu, satisfeita.
"Isso mesmo. Técnicas únicas que só os membros de sangue puro de cada clã podem aprender completamente. Elas são passadas de geração em geração, e só funcionam plenamente em quem possui a linhagem espiritual compatível."
Indra se recostou um pouco, absorvendo o peso do que aquilo implicava.
"Então alguém como eu..."
"Pode começar com uma técnica pública." — completou Sophie. "Nada de errado nisso. Eu mesma comecei assim. O importante é aprender a direcionar sua energia de forma consciente, controlada e segura. Seu Núcleo Interno ainda está em formação, e essa é a fase mais crítica."
Ela fez uma pausa e tocou levemente a superfície da mesa com a ponta do dedo, liberando uma pequena onda de energia azulada que serpenteou como uma brisa antes de se dissipar. A demonstração foi sutil, mas intensa.
"Amanhã, vou te levar ao Núcleo da Academia e vamos registrar sua afiliação oficial. Você vai receber acesso ao Manual de Técnicas Básicas, que contém algumas Técnicas de Refinamento da Alma seguras para iniciantes. Quando você dominar isso..." — ela empurrou a pílula levemente na direção dele. "vai poder usá-la de verdade."
Indra pegou a cápsula com cuidado, como se carregasse um pedaço de alma viva entre os dedos.
"E quanto custa uma dessas?"
Sophie riu.
"Não se preocupa com isso por agora. Essa eu comprei pra você. Considere um presente... ou um investimento" — piscou para ele.
Indra sorriu de volta, mas sentia no fundo do peito uma mistura de gratidão e responsabilidade.
"E se eu errar? E se eu desperdiçar?"
Sophie se levantou mais uma vez, dessa vez indo até a porta da cozinha. Antes de sair, ela virou-se e disse com uma tranquilidade encantadora:
"A alma pode ser frágil, Indra... mas também é resiliente. Só quebra quem não tenta. E você..." — seus olhos bicolores brilharam com convicção. "você nasceu para tentar o impossível."
E com isso, ela desapareceu escada acima, deixando Indra sozinho, olhando fixamente para a pílula de Nutrição da Alma em sua mão.
A noite do Outro Lado o envolvia mais profundamente a cada instante.
E sua alma... parecia faminta.
Indra segurava a pequena Pílula de Nutrição da Alma entre os dedos como se fosse algo mais precioso do que ouro. A translúcida cápsula esbranquiçada pulsava levemente em seu toque, como se tivesse vida. A energia nela contida era calma, mas profunda, como o fundo de um lago sem fundo. Havia algo reconfortante naquele objeto — algo que ele não sabia nomear, mas que tocava uma parte de si que há muito tempo sentia-se esquecida.
Respirou fundo, fechou os olhos, e com a prática recém-adquirida, visualizou o espaço interno de seu Anel Dimensional. O vórtice abriu-se com facilidade, e em poucos segundos a pílula havia desaparecido de sua mão, armazenada na pequena dimensão pessoal que agora carregava no dedo. Ele soltou o ar, satisfeito com sua eficiência. Estava começando a gostar daquela sensação: usar a Energia, tocar o invisível.
Virou-se em direção à escadaria ampla que levava ao segundo andar. A madeira antiga sob seus pés produzia rangidos suaves, acolhedores. A luz dourada do abajur ainda aceso na sala projetava sombras longas nas paredes, dando ao ambiente uma aura quase onírica.
Ele colocou um pé no primeiro degrau… e então parou.
"Espera aí… que quarto?." — pensou, franzindo o cenho.
Indra passou a noite anterior no quarto de Sophie, mas agora, com todas as emoções e revelações esfriando, a pergunta mais mundana emergia com força: ele sequer tinha um quarto ali?
Olhou para cima, as escadas sumiam em um corredor mal iluminado com algumas portas fechadas. Não fazia ideia de qual delas seria a dele — se é que alguma era.
Antes que pudesse decidir se perguntaria ou exploraria, uma presença surgiu no topo da escada. A luz amarelada de uma luminária de parede delineava a figura feminina contra a penumbra do corredor.
Era Sophie.
Ela estava ali parada, o roupão preto escorrendo pelas curvas do corpo, ligeiramente aberto na lateral, revelando um pedaço suave da coxa e a curva discreta de sua cintura. Seus olhos bicolores, que costumavam ser tão intensos e dominantes, agora desviavam discretamente do olhar de Indra.
Por um instante, ele pensou que ela fosse apenas atravessar o corredor, mas então ela pigarreou, como se estivesse reunindo coragem para falar algo.
"É… hã…" — começou ela, cruzando os braços levemente e olhando para o corrimão. "Eu… acho que esqueci de te mostrar um quarto. Ontem tudo foi meio... caótico."
Indra esboçou um sorriso, quase divertido com a situação.
"Não tem problema. Estou na sua casa, lembra? Não estou exatamente pagando aluguel."
Ela bufou, olhando para ele de relance, como se esperasse esse tipo de resposta.
Houve um pequeno silêncio. Então, Sophie mordeu o lábio inferior, hesitante. Seus ombros relaxaram, e com uma voz mais suave, quase brincando, ela disse:
"Bom... se você quiser… pode dormir no meu quarto de novo. Só pra não ficar sozinho, sabe? A casa é meio grande... e esquisita à noite."
Enquanto falava, Sophie puxou levemente a faixa do roupão, que já estava frouxa, deixando-o escorregar alguns centímetros mais. O tecido caiu um pouco mais sobre seus ombros, revelando um vislumbre das clavículas e uma alça fina de algo que Indra nem teve tempo de identificar.
Os olhos dele se arregalaram por um breve segundo, mas ele se conteve. Estava aprendendo que, com Sophie, o inesperado era quase rotina.
"Você tá tentando me seduzir ou tá com medo do escuro?" — ele disse com um sorriso enviesado, arqueando uma sobrancelha.
"Os dois?" — ela respondeu, meio rindo, meio se escondendo atrás do cabelo solto.
Indra respirou fundo, como se estivesse tentando recuperar o controle sobre a situação. Mas no fundo, ele sabia que já tinha aceitado o convite assim que ela apareceu no topo da escada.
"Tudo bem." — respondeu, subindo calmamente os degraus."Mas você vai ter que dividir o cobertor."
"Eu tenho dois." — ela disse, virando-se para guiá-lo até o quarto.
E com passos suaves, os dois desapareceram pelo corredor. A porta do quarto se fechou com um clique quase inaudível.
O que aconteceu lá dentro?
Isso permanece como um sussurro entre paredes antigas e a penumbra de um lar recém-compartilhado.
Talvez seja melhor assim.
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A luz dourada da manhã penetrava suavemente pelas frestas da janela, banhando o quarto em um brilho morno. O silêncio era preenchido apenas pela respiração tranquila de dois corpos próximos, aquecidos pelo conforto de uma noite compartilhada. Indra foi o primeiro a abrir os olhos, ainda meio perdido entre sonho e realidade. O teto entalhado de madeira da casa de Sophie era diferente do que ele conhecia, e por um instante, ele se lembrou: estava em outro mundo. Literalmente.
Virou a cabeça devagar. Ao seu lado, Sophie dormia de bruços, com o cabelo bagunçado escorrendo pelos ombros nus. Ela tinha uma expressão tranquila, quase serena. Indra sorriu com um misto de estranheza e admiração. Era difícil acreditar que aquela mulher, que dormia tão pacificamente, era a mesma que havia o salvado, o guiado — e o surpreendido repetidamente com sua força, inteligência e... charme incomum.
Decidiu não incomodá-la e escorregou para fora da cama. Não deu nem três passos até ouvir a voz sonolenta e rouca atrás de si:
"Vai fugir antes de fazer o café?"
Ele se virou, surpreso, encontrando os olhos bicolores de Sophie semiabertos e um sorriso debochado no canto dos lábios.
"Eu ia preparar o café pra você, chefe." — respondeu ele, rindo.
"Hm... aceito. Mas só depois do banho. Você tá fedendo energia residual."
Ambos tomaram banho — em momentos separados, para evitar atrasos… e distrações. Depois de se arrumarem com roupas mais leves e confortáveis, desceram juntos para a cozinha. O ambiente tinha uma rusticidade charmosa: utensílios de cobre pendurados, panelas antigas, um fogão a lenha com tecnologia esotérica embutida.
Enquanto cortavam frutas e preparavam ovos mexidos e torradas com manteiga, a conversa fluía leve.
"Hoje acho que seria bom te levar até o Núcleo da Academia." — comentou Sophie, enquanto mexia uma panela. "Você precisa de uma cópia do Manual de Técnicas Básicas. É com ele que vai começar a formar suas Veias Mágicas e, mais importante, seu Núcleo Interno."
Indra ergueu uma sobrancelha.
"Tipo o “dantian” das novels de cultivo?"
"Algo assim." — disse ela, rindo do paralelo. "Mais ou menos. Aqui usamos o termo Núcleo Interno, mas o princípio é parecido."
"Parece importante."
"É. Sem Veias Mágicas, você não circula Energia. Sem Núcleo Interno, você não a armazena. E sem as duas coisas... você é só um Aprendiz. Não muito acima de grandes predadores."
Com o café pronto, sentaram-se à mesa e comeram tranquilamente. Sophie ainda parecia um pouco mais quieta do que o habitual, mas de vez em quando lançava olhares discretos para Indra, como se o estivesse analisando — ou talvez simplesmente se acostumando à presença dele naquela casa. Ele também não falava muito. Parte por estar assimilando tudo que vinha descobrindo, parte porque... bem, ele estava gostando daquela nova rotina.
Após a refeição e mais alguns minutos organizando as coisas, saíram de casa. Era ainda cedo. As aulas na Academia só começariam dali a algumas horas, o que dava tempo suficiente para resolverem o que queriam no Núcleo.
As ruas do Burgo Real estavam movimentadas como sempre, mas com uma energia mais calma pela manhã. O céu estava limpo, e a luz do sol refletia nos telhados encantados que mudavam de cor levemente com a luz.
Indra, curioso como sempre, puxou conversa:
"Sophie, aquele Clã Ye que fabrica a Pílula de Nutrição da Alma... ele tem origem chinesa, certo?"
Ela assentiu com a cabeça, sem precisar parar.
"Sim. Os Ye são descendentes diretos de uma linhagem antiga, que se estabeleceu por aqui há séculos. Um dos poucos clãs a manter fortemente a estética e as tradições do Leste."
"Faz sentido. Eu vi um cara na Academia… parecia saído direto de uma novel Xianxia. Usava túnica branca, cabelo preso no alto, e até tinha aquele ar de “julgarei você com minha honra milenar”."
Sophie soltou uma risada curta.
"Esse é o Ye Chen. Herdeiro do Clã Ye. O maior gênio da atualidade, dizem. Dos Dez Clãs Médios, o Clã Ye é considerado o mais poderoso — e ele é a joia da coroa."
Indra arqueou a sobrancelha.
"E ele já é Mestre?"
"Mestre de médio nível, segundo os rumores. Enquanto a maioria dos herdeiros dos Nove Grandes Clãs ainda são Mestres de baixo nível… e os herdeiros dos Dez Clãs Médios, como o próprio Ye Chen, geralmente não passam de Especialistas de médio ou alto nível."
"Então ele tá acima do esperado."
"Bem acima." — confirmou Sophie, agora séria. "Ele é honrado, tradicional, respeita as raízes do seu clã… Mas também é extremamente competitivo. Um prodígio que sabe que é um prodígio. Gente assim não costuma gostar de surpresas."
Indra entendeu a indireta.
"Então é melhor manter distância?"
"É. Pelo menos por enquanto. Não só dele, mas de qualquer herdeiro dos Clãs Médios ou Maiores. Eles vivem num nível que você ainda nem consegue imaginar, Indra."
Ela o olhou de lado, avaliando.
"Mas isso pode mudar." — continuou ela. "Com o talento que você demonstrou até agora... se você aprender tudo direitinho, se aplicar com seriedade... quem sabe? Talvez você não precise se manter distante para sempre."
Indra olhou em frente. A Academia Esotérica já se erguia à frente deles, imponente, com seus arcos de mármore negro, símbolos flutuantes e a aura de poder que parecia sussurrar através de suas paredes.
Ele sorriu, sentindo uma chama discreta, mas crescente, acender dentro de si.
"Então vamos começar."
"Vamos." — disse Sophie, sorrindo. "Mas só se você prometer não tentar bater em ninguém nos primeiros dias."
"Sem promessas." — respondeu ele, já atravessando os portões da Academia.
E assim, os primeiros passos no caminho dos fortes foram dados.