A entrada no Núcleo da Academia Esotérica era marcada por uma arquitetura tão moderna quanto fria. Os corredores pareciam feitos de um mármore metálico negro, levemente polido, refletindo as luzes brancas em tons suaves. Apesar do nome imponente, o “Núcleo” mais lembrava uma sala de diretoria automatizada do que um centro acadêmico tradicional. Robôs com semblantes neutros deslizavam silenciosamente de um lado para o outro, enquanto painéis digitais reluziam com comandos, arquivos e registros da Academia.
Indra entrou ao lado de Sophie, que caminhava com passos seguros em direção a um balcão de madeira escura onde se encontrava um dos painéis. Com um toque na tela flutuante, ela começou a preencher os dados necessários para emitir o Manual de Técnicas Básicas.
Indra, sem muito o que fazer, desviou o olhar para Sophie, e o que começou como um simples olhar logo se tornou uma análise atenta — talvez atenta demais.
O traje justo que ela usava lembrava os uniformes de forças especiais, moldado com precisão ao seu corpo. Ele era adornado com fivelas e detalhes metálicos em prata, e no peito, o brasão do Clã Ledger: um corvo de duas caudas pintado em preto sobre fundo prateado. Por cima, ela usava uma jaqueta de couro que repousava nos ombros como se fosse parte de um uniforme cerimonial, reforçando ainda mais a impressão de que ela era uma comandante saída direto de um anime de ficção científica.
Indra não sabia dizer se era o design do traje ou a forma como ela se movia, mas era difícil não encarar. No entanto, o que mais prendeu sua atenção não foi o conjunto em si... mas a cauda.
Longa, fina, vermelha, com pouco mais de um metro de comprimento. Ela se movia com um ritmo quase hipnótico, como se tivesse vida própria — dançando de um lado para o outro, como se estivesse em sintonia com os pensamentos de Sophie. Era a primeira vez que Indra observava aquele detalhe tão atentamente. Talvez por respeito, ou por puro receio de fazer algo estranho. Mas hoje... bem, hoje o autocontrole dele resolveu tirar folga.
Sem pensar muito, quase por instinto, ele estendeu a mão.
E tocou.
A ponta da cauda era suave, quente e viva. Indra passou os dedos levemente por ela, curioso, encantado, como uma criança que descobrira um brinquedo novo e absolutamente fascinante. A cauda reagia, ondulando sob seus dedos como se estivesse viva.
O som da digitação no painel cessou.
Sophie congelou.
Lentamente, com uma expressão que misturava confusão, surpresa e... um leve rubor, ela se ergueu e virou o rosto para encará-lo. Seus olhos bicolores estavam arregalados, e por um instante, apenas o silêncio pairou entre os dois.
Indra, só então percebendo que talvez tivesse cruzado uma fronteira invisível e possivelmente sagrada, soltou a cauda de imediato, arregalando os olhos como se tivesse tocado em um artefato explosivo. Ele abriu a boca para pedir desculpas, mas tudo que saiu foi:
"...Eu... hã... eu achei que fosse tipo... decorativa?"
Sophie piscou lentamente. Em silêncio, ela se virou para o painel, pegou o Manual de Técnicas Básicas recém impresso e o estendeu para ele com um movimento mecânico, quase robótico.
"Obrigado..." — murmurou Indra, mais por reflexo do que por real consciência.
Sem dizer uma palavra, ela começou a caminhar em direção à saída.
Indra olhou para o manual, depois para Sophie se afastando com a cauda agora firme, balançando em silêncio — e decidiu que o melhor a fazer era segui-la antes que ela mudasse de ideia e resolvesse devolvê-lo para o Plano Terreno. Ou algo pior.
No caminho, tentou pensar em algo para dizer. Qualquer coisa que desfizesse a atmosfera estranha. Mas nada vinha.
Ainda assim, do canto do olho, notou que a cauda dela tremia levemente — não de raiva, mas como se contivesse um riso que se recusava a nascer.
Talvez, só talvez... não estivesse tão encrencado assim.
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As portas automatizadas da Academia Esotérica se fecharam atrás deles com um som suave, deixando para trás os painéis digitais brilhantes, os robôs silenciosos e o clima de leve tensão que ainda pairava no ar.
Sophie andava à frente, com seus saltos elegantes batendo ritmadamente contra o chão da calçada de pedra negra, típica do centro da Cidade Interna. O sol da manhã já aquecia levemente a pele, e um vento fresco soprava entre os edifícios de arquitetura futurista e clássica misturada, como se todas as eras convivessem ali.
Indra caminhava atrás, com os olhos fixos na figura de Sophie. Ou melhor, fixos em sua própria vergonha.
'O que foi aquilo...?!', pensava ele, o rosto esquentando a cada passo. 'Ela... ficou parada. Me encarou. E depois saiu sem dizer uma palavra. Ela nem gritou. Nem bateu. Isso é pior...'
Ele repassava mentalmente os segundos que haviam se passado após seu pequeno surto de curiosidade impulsiva. E foi então que um pensamento o atingiu como um raio:
Caudas.
Semi-humanos.
Animes.
Um turbilhão de memórias o atingiu: cenas de anime, mangás, jogos... tudo com o mesmo padrão. Caudas eram frequentemente tratadas como... áreas sensíveis. Quase íntimas. Em algumas obras, mais íntimas do que o próprio necessário.
"...Não." — Indra murmurou para si mesmo, quase tropeçando. "Não, não, não..."
Seus olhos se arregalaram, o suor escorreu pela têmpora, e por um breve instante, ele sentiu como se sua alma estivesse tentando fugir do seu corpo pela orelha esquerda.
'Eu... eu toquei na... na...' — ele nem conseguia pensar na palavra. 'Na... zona proibida!?'
O desespero começou a se instalar. Talvez Sophie estivesse apenas em choque. Talvez estivesse esperando o momento certo para aplicar uma técnica ancestral de decapitação espiritual. Talvez—
Foi então que Sophie, ainda andando, virou levemente o rosto para trás. Havia algo nos olhos dela. Um brilho diferente. A boca contida... os ombros levemente tensos.
Ela estava... tremendo?
"..."
Indra parou.
"Ei, tá tudo b—" — começou ele, mas não terminou. Porque naquele instante Sophie se virou por completo, apontou para ele e explodiu em uma gargalhada alta, completamente desinibida.
"HAAAAHAHAHAHA!". — Sophie ria com gosto, segurando a barriga, enquanto sua cauda fazia piruetas atrás dela. "A sua... CARA! Meu Deus, a sua cara foi a melhor coisa que eu vi esse mês inteiro!"
Indra piscou. Uma, duas vezes. Ainda paralisado no lugar.
"O... quê?"
"Você achou." — disse ela entre risos. "Que a minha cauda era tipo... sei lá, uma “parte proibida”? Que tocou num “território sagrado”?" — disse ela com os dedos fazendo aspas no ar, enquanto ria novamente.
Indra sentia que seu cérebro havia travado. Estava tentando decidir entre rir de si mesmo ou cavar um buraco e morar nele pelo resto da vida.
"Esperei o momento exato só pra ver você derreter de desespero." — Sophie disse limpando uma lágrima do canto do olho. "Valeu cada segundo."
"Você... fingiu?" — Indra perguntou com a voz semicerimonial, como um homem que acabava de sobreviver a uma sentença de morte e agora buscava explicações metafísicas.
"Claro!" — respondeu ela, com um sorriso de orelha a orelha. "Queria ver até onde você ia. Mas, olha, tenho que admitir: você durou bem menos do que eu esperava."
Indra cobriu o rosto com as mãos. O alívio competia com a vergonha, e ambos perderam para o riso que escapou de sua boca logo em seguida.
"Eu realmente achei que tinha feito algo absurdamente errado..."
"A cara de “minha vida acabou” foi impagável."
Ambos riram, agora caminhando lado a lado por uma rua lateral, em direção à saída do setor acadêmico.
Depois de alguns minutos de risos, Sophie ficou mais séria, mas não rígida. Ela se virou um pouco para ele, com um sorriso menos zombeteiro.
"Mas falando sério agora, Indra." — disse ela, se aproximando o suficiente para encostar levemente o ombro no dele. "Mesmo que caudas não sejam consideradas partes íntimas, ainda são parte do corpo. Então... evite sair por aí pegando em caudas alheias, tá?"
Ela sorriu, e sua cauda fez uma pequena curva no ar, leve e graciosa.
"A maioria dos semi-humanos não vai rir como eu ri. Alguns podem não gostar nadinha."
"Certo, certo." — respondeu ele, fazendo um gesto solene com as mãos. "Prometo solenemente nunca mais encostar em uma cauda sem permissão. Colocarei isso no meu caderno de regras cósmicas universais."
"Bom garoto." — disse ela, dando dois tapinhas no ombro dele com um ar maternal fingido. "Agora vamos voltar pra casa. Você ainda tem que aprender a usar alguma daquelas Técnicas Básicas, ou vai acabar explodindo o fogão tentando cozinhar com energia espiritual."
Indra assentiu, agora sentindo-se mais leve. O mal-entendido havia se resolvido da melhor maneira possível — com uma boa dose de humor e uma lição valiosa. Enquanto seguiam pelas ruas movimentadas, ele olhou para o manual em sua mão e depois para Sophie.
Era um novo mundo.
Mas, felizmente, ele não estava sozinho para explorá-lo.
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Ao chegarem à casa, Sophie não perdeu tempo. Como se obedecesse a um ritual antigo, começou a mover alguns móveis da sala de estar com precisão calculada. Indra apenas observava em silêncio, respeitando o que parecia ser uma cerimônia silenciosa, quase sagrada.
A antiga mesa de centro foi deslizada para o canto da sala, os tapetes enrolados e colocados em um pequeno armário. Em poucos minutos, o espaço foi transformado. O piso liso e limpo da madeira negra brilhava suavemente sob a luz natural que entrava pelas janelas largas. No centro do cômodo, dois finos colchonetes circulares haviam sido colocados lado a lado, como pequenos altares de concentração.
Sophie se sentou com as pernas cruzadas em posição de meditação. Seu corpo parecia se alinhar com o espaço, os ombros relaxados, as mãos repousando sobre os joelhos. A cauda vermelha esticava-se para trás como uma serpente adormecida. Os olhos dela estavam fechados, mas sua presença era vívida.
"Sente-se, Indra." — disse ela, com a voz baixa, como um sussurro entre trovões.
Indra assentiu, sem fazer perguntas. Ele se sentou à sua frente, imitando sua postura com o melhor de suas habilidades. Ainda que seu corpo não estivesse acostumado com a rigidez da posição, havia algo naquele ambiente que o fazia sentir-se... pronto.
"Agora." — continuou Sophie, abrindo os olhos devagar. "Abra o Manual de Técnicas Básicas e leia para mim as técnicas de Refinamento da Alma listadas."
Indra pegou o manual que carregava desde a saída da Academia. A capa preta com letras douradas parecia brilhar levemente sob a luz. Ele a abriu com cuidado, virando as páginas até encontrar o início do capítulo citado.
"Aqui está..." — murmurou. Limpou a garganta e começou a ler em voz alta:
“Técnicas de Refinamento da Alma são métodos desenvolvidos ao longo de séculos para fortalecer o Núcleo Interno, estimular a formação das Veias Mágicas e expandir o potencial espiritual de um Paranormal. Cada técnica atua de forma única sobre o fluxo de Energia e auxilia na construção do fundamento que sustenta o Caminho escolhido.”
Ele virou a página.
“As técnicas básicas padronizadas pela Sociedade Esotérica são:
1. Pulso da Essência Interior
2. Ritmo do Núcleo Tranquilo
3. Fluxo Espiritual Harmonioso
4. Sopro da Alma Latente
5. Corrente Serpenteante do Núcleo.”
Indra leu os nomes lentamente, como se quisesse absorvê-los com a própria pele. Sophie ficou em silêncio por alguns segundos, os olhos baixos. Ela parecia ponderar com cuidado, quase como se estivesse pesando algo invisível no ar.
"Bom." — disse por fim. "Agora quero que você me mostre sua Energia."
Indra franziu o cenho por um instante.
"Manifestar... minha Energia?"
"Isso. Concentre-se. Sinta dentro de si aquilo que desperta quando você se conecta com o seu centro. Direcione para sua mão."
Indra fechou os olhos.
Era difícil descrever o que fazia naquele momento. Não era como acionar um músculo, nem como lembrar de algo esquecido. Era mais como... escutar uma música que só ele podia ouvir. Lentamente, ele mergulhou em seu interior, buscando a mesma sensação que sentira desde o primeiro dia em que a Energia despertou dentro de si.
E então ele a encontrou.
Um calor sereno, não flamejante. Um brilho que não cegava, mas iluminava. Uma corrente branca suave, circulando ao redor de seu coração. Ele a guiou com a mente para o braço direito, descendo até a palma da mão. A Energia respondeu com naturalidade — não com força bruta, mas com familiaridade. Como se sempre estivesse ali, esperando por ele.
Quando abriu os olhos, uma luz branca muito tênue brilhava na palma de sua mão. Fraca, mas viva. Uma chama silenciosa.
Sophie o observava com atenção. Após alguns segundos, ela falou:
"Eu sabia. Você é um Cultivador."
Indra piscou, confuso.
"Cultivador?"
Sophie se endireitou ligeiramente, adotando um tom mais didático, mas sem perder a seriedade.
"No mundo dos Paranormais, nós reconhecemos Nove Caminhos. São as nove formas puras pelas quais a Energia pode se manifestar no corpo de um ser desperto. Cada Caminho tem sua coloração, sua vibração e sua essência."
Ela ergue a mão, e uma pequena chama azul escura se formou na ponta de seu dedo indicador.
"O meu Caminho é o do Poder Mágico. Essa energia azul escura. A sua." — disse ela, apontando para a luz branca na mão de Indra. "É o Qi."
"Qi..." — repetiu Indra, saboreando o nome como se fosse uma palavra ancestral.
"O Qi é a Energia da alma moldada pela introspecção. Cultivadores como você desenvolvem o corpo, o espírito e a mente em harmonia. É uma Energia refinada, construída a partir da disciplina, da repetição e da conexão com o seu eu interior. É o Caminho seguido pelo Clã Bianchi, um dos Nove Grandes Clãs... e, claro, pelo Clã Ye."
Indra olhava para a luz branca com um novo olhar. Como se, de repente, compreendesse algo que sempre esteve ali, mas ele nunca ousou nomear.
"Mas se eu nasci com essa Energia, significa que sou um Cultivador para sempre?"
"Não necessariamente." — respondeu Sophie. "Você nasce com uma afinidade, mas pode treinar em outro Caminho, se desejar. É difícil. Exige muito mais tempo e esforço... mas não é impossível. Ainda assim." — ela fez uma pausa, olhando-o de cima a baixo. "Considerando sua personalidade e a forma como sua Energia flui... o Qi é ideal para você."
Sophie então se inclinou um pouco para frente e abriu novamente o manual, apontando com o dedo para uma das técnicas descritas.
"E a técnica com que você deve começar é esta: Fluxo Espiritual Harmonioso."
"Por quê essa?"
"Porque ela foi criada pelos próprios anciãos do Clã Ye. É uma técnica de transição perfeita para quem ainda está entendendo como seu Qi se move dentro do corpo. Ela ensina a suavizar o pulso interno da alma, a escutar o silêncio entre as batidas do seu Núcleo. Uma base sólida para qualquer Cultivador."
Indra passou os olhos pela descrição da técnica. Cada linha parecia desenhada para ele.
Naquele momento, sentado sobre o colchonete, com a luz branca pulsando em sua mão e as palavras de Sophie ainda ecoando em sua mente, ele compreendeu algo profundo.
Ele tinha um caminho.
E, pela primeira vez, estava começando a trilhá-lo.