.4. Sentinela em Foco

O alarme toca, cortando o silêncio do meu quarto. Abro os olhos devagar, sentindo o peso do treino do dia anterior em cada músculo do meu corpo. A dor é real, mas não é motivo para desistir. Pelo contrário, é o lembrete de que estou viva, de que estou lutando. Me sento na cama, respiro fundo, e me lembro do motivo pelo qual estou aqui: não para ser uma vítima, não para ser protegida, mas para me tornar forte o suficiente para nunca mais precisar depender de ninguém.

Olho para o uniforme pendurado na cadeira — o macacão colado, que mais parece uma armadura tecnológica do que uma roupa comum. Visto com cuidado, ajusto cada detalhe, ajeito o cabelo em um coque firme e saio do quarto com a postura de quem sabe exatamente o que quer. Hoje, ninguém vai me diminuir.

No refeitório, o cheiro de café fresco e pão quente me dá um breve conforto. Clara já está lá, sentada em uma mesa perto da janela, mexendo distraída no tablet. Quando me vê, sorri, mas seus olhos carregam uma preocupação que não consigo ignorar.

— Bom dia, sobrevivente — ela brinca, empurrando uma caneca fumegante na minha direção.

— Bom dia, sumida. Ontem você desapareceu — respondo, sem rodeios, sentando ao lado dela.

Ela hesita por um segundo, como se estivesse escolhendo as palavras certas.

— Tive uns assuntos pra resolver. Mas ouvi dizer que você causou ontem.

Dou de ombros, tentando não deixar o orgulho transparecer.

— Não fiz nada demais. Só tentei manter a ordem. O professor Lucian tentou impor respeito, mas Dante não gostou. O clima ficou pesado, só isso.

Clara arregala os olhos, surpresa.

— Você tá falando do Dante? Ele discutiu com o Lucian por sua causa?

— Não foi bem uma briga, mas foi tenso. E, claro, todo mundo ficou me olhando como se eu fosse o problema.

Ela suspira, meio preocupada, meio impressionada.

— Agora faz sentido. Luna, você sabe quem é o Dante, né?

— Só sei que ele não entende limites.

— Ele é um dos Cavaleiros do Apocalipse. Eles respondem diretamente ao Magnus. E não é qualquer um que chama atenção deles. E, pra piorar, já ouvi gente dizendo que até o Theo ficou de olho. O pessoal já tá inventando que os dois brigaram por você.

Eu respiro fundo, tentando manter a calma. Não vim pra Cetus pra virar celebridade de fofoca. Muito menos pra alimentar rumores de romance. Depois do que aconteceu com o Mike, meu noivo, não tenho espaço pra esse tipo de coisa. Só quero paz e distância de confusão.

— Ótimo. Agora sou protagonista de novela — ironizo, mas mantenho a postura firme. — Só queria passar despercebida.

— Aqui, isso é impossível — diz Clara, sincera. — Ainda mais depois de ontem. Só toma cuidado, Luna. As pessoas aqui adoram um escândalo.

Enquanto ela fala, sinto o peso das palavras. Sei que não posso me dar ao luxo de baixar a guarda, mesmo quando tudo que eu quero é desaparecer.

As aulas seguem, e mesmo com os olhares e cochichos, mantenho o foco. Não sou de fugir de desafio, mas também não dou abertura pra ninguém. Cada movimento, cada resposta, faço questão de mostrar que estou ali pra aprender, não pra virar alvo de especulação.

No intervalo, procuro Clara, mas ela sumiu de novo. Não me abalo. Pego minhas coisas e sigo pelo corredor. O silêncio é interrompido por passos firmes atrás de mim. Theo aparece, bloqueando meu caminho.

Ele é imponente, mas não me intimida. Não agora. Não depois de tudo que já enfrentei.

— Luna — ele diz, a voz baixa e controlada.

— Oi — respondo, seca, sem desviar o olhar.

Antes que ele diga mais alguma coisa, Clara aparece, quase como se estivesse esperando.

— Theo, vai embora. A última coisa que a Luna precisa é mais gente falando dela.

Theo parece surpreso, quase ofendido.

— Sério? Você tá me mandando embora? — Ele ri, mas não tem graça. — Ninguém nunca falou comigo assim.

Ele se aproxima, levantando a mão como se fosse tocar meu braço. Eu não hesito: afasto a mão dele com firmeza.

— Não precisa me tocar pra falar comigo, Theo. Respeita meu espaço.

O silêncio pesa. Theo me encara, claramente desconcertado. Pela primeira vez, alguém não reage ao charme dele.

— Você realmente não é como as outras — ele diz, quase admirado.

— Não estou aqui pra ser como ninguém — respondo, firme.

Saio sem olhar pra trás, sentindo o olhar dele me seguir. Não é orgulho. É autopreservação. Não vim pra Cetus pra repetir velhos erros—e muito menos pra abrir espaço pra sentimentos que ainda não cicatrizaram.

Mais tarde, Clara me chama no quarto dela, com o rosto sério.

— Luna, olha isso.

No tablet, o Sentinela em Foco exibe uma foto minha com Theo no corredor. O ângulo faz parecer que ele está me tocando, e a legenda é direta: “Novo casal na área? Theo finalmente encontrou alguém à altura?”

Sinto o estômago revirar. Não era isso que eu queria. Não agora.

— Isso só pode ser brincadeira — murmuro, cansada.

Clara suspira.

— Amanhã, todo mundo vai querer saber da sua vida. Inclusive eles.

Olho pra foto, sentindo o peso de ser o centro das atenções—mas, sinceramente, não tenho energia pra me importar com fofoca. Só quero que me deixem em paz. Mas sei que, em Cetus, isso é pedir demais.

Na manhã seguinte, o Sentinela em Foco explode de comentários. Meu nome está em todas as rodas, junto com o de Theo. E, entre as notificações, uma mensagem privada aparece:

“Podemos conversar? – Theo”

Meu coração aperta—não de expectativa, mas de alerta. Não vou deixar ninguém atravessar minhas defesas de novo.