Na manhã seguinte, o sol parecia mais atrevido sobre o espelho d´´agua do jardim Kravet. Tudo seguia como sempre, mas havia algo no ar.
Rafaela de blazer cinza grafite e olhar afiado, caminhava pelo saguão da empresa sem saber que aquela terça-feira traria uma mudança definitiva.
Leticia Amaral havia chegado- curriculo impecável, postura discreta, e uma elegância que não pedia licença.
-Nova do financeiro? - cochichou uma das recepcionistas.
- Não... Nova na vida da chefe, só não sabe ainda - respondeu uma voz de copa sorrindo.
E assim, entre planilhas, contratos e um passado recente ainda quente demais, Rafaela cruzou os olhos com Leticia pela primeira vez. O resto... o destino trataria de escrever.
MEMOÓRIAS: TEMPESTADE,TOALHAS E TERRITÓRIOS INVADIDOS.
A primeira gota caiu no meio do caminho de volta.
A segunda em cima do chapéu de Laura.
A terceira, direito no peito de Rafaela - que olhou paro céu sorriu como quem já sabia.
-Isso é normal por aqui? - perguntou Laura, cobrindo a cabeça com a jaqueta emprestada.
- Só quando a gente finge, com rajadas, trovões e um cheiro delicioso de terra molhada.
O carro atolou a duzentos metros da porteira.
E arealidade caiu como um raio: elas teriam que passar a noite ali. Juntas. Na fazenda. Sozinhas.
CASA DE FAZENDA / NOITE
-Tem só um quarto pronto - avisou Rafaela, tirando as botas encharcadas. - Mas posso dormir no sofá, se você preferir manter o protocolo.
- Protocolo é coisade assessoria. Eu sou fã do improviso - disse Laura, aceitando a toalha que Rafaela ofereceu.
A energia caiu.
E fcou só a Luz das velas.
Laura riu, nervosa:
-Isso é cena de filme, né? A proxima é o quê, um beijo de cinema?
Rafaela não respondeu. Só acendeu outra vela - e o clima.
Laura com a camiseta cinza de algodão de Rafaela. E Rafaela com um short de moletom irresistivel.
O quarto era pequeno, com lençois brancos e o som da chuva no telhado.
Laura deitou de lado. Rafaela também.
Elas não se tocavam. Mas o ar entre elas estava prestes a pegar fogo.
- Você está arrependida de ter vindo? - Sussurou Rafaela.
- Não. Estou arrependida de não ter vindo antes.
Silêncio.
- E você? - perguntou Laura.
- Eu estou com medo.
- Medo de mim?
- Medo de querer demais e fingir que é só parte do contrato.
Um trovão forte fez Laura se encolher, instintivamente. Rafaela puxou a coberta.
E, no impulso mais sincero da noite, as mãos se encontraram debaixo do lençol.
Não foi beijo.
Mas foi quase mais íntimo que isso.
- Esta tudo bem se a gente só dormir d emãos dadas? - perguntou Rafaela.
- Esta tudo ótimo. Mas só se prometer que não vai soltar antes d emim.
Mão entrelaçadas. Corações disparando.
E uma promessa silenciosa no escuro.
Laura acordou com o som do gotejar da chuva que resistia no telhado, e com o cheiro. Aquele cheiro. Café coado na hora, com aquele toque de canela que denuncia uma mulher que sabe o que faz.
Abriu os olhos devagar.
A cama ao lado estava vazia. Mas o lençol ainda morno.
E na mesinha, um bilhete manuscrito em letra torta e charmosa:
Estou na cozinha. Se vier com cara amassada, ganha uma fatia extra de bolo.
- Laura levantou. Vestiu a camisa de flanela de Rafaela que ainda estava ali. Cheirava lavanda, terra e perigo emocional.
Desceu as escadas da casa da fazenda sentindo algo novo: tranquilidade com borboletas no estômago.
COZINHA RÚSTICA, CAFÉ E BOM DIA COM FLECHA
Rafaela estava descalça, cabelos soltos, mexendo o café na chaleira de barro.
Usava short jeans e uma camiseta com estampa do Raul Seixs.
E um sorriso que dava bom dia antes mesmo da boca abrir.
- Bom dia, dorminhoca de contrato - provocou.
- Bom dia, barista rural que serve tensão sexual com café.
Sentaram- se a mesa. Rafaela passou o café em filtro de pano, com mãos leves.
Serviu duas canecas.
Laura tomou o primeiro gole e quase suspirou alto.
- Isso aqui tem magia?
-Não. Só tem intenção.
Laura encarou.
Rafaela também.
O silêncio entre elas já falava mais que cláusula assinada.
-Dormiu bem? - Perguntou Rafaela.
-Melhor do que em muitos hotéis cinco estrelas.
- Deve ser o colchão...ou a companhia.
Laura queria puxar assunto sobre o contrato.
Sobre a cidade. Sobre trabalho.
Mas tudo parecia pequeno perto daquele momento de paz, com cheiro de bolo e olhar que acaricia.
-Você sempre foi assim? - Perguntou Laura.
- Assim como?
- Calma por fora e furacão por dentro.
Rafaela sorriu de lado.
-E você sempre tentou fingir que não sente nada, mesmo quando sente tudo?
Laura mordeu o canto da boca. Estava sem argumentos. E, sinceramente, sem vontade de contra-atacar.
Na varanda da fazenda, coma caneca ainda quente nas mãos, Laura olhou para o céu aberto e pensou:
"Se isso for encenação, que espetáculo mais verdadeiro".
O celular vibrou. Mensagem de Mariana:
"As fotos de vocês juntas ontem viralizaram.
Já estão dizendo que o casal do ano é real.
Boa sorte.
Laura não respondeu.
Olhou para Rafaela, que sorria distraid perto do fogão.
E pensou:
"Talvez eu não queira explicar nada."