A floresta me cercava.
Úmida. Pulsante. Selvagem.
Os troncos eram largos, cobertos por líquen viscoso e teias antigas. Fungos esbranquiçados se projetavam das raízes, tremendo levemente com o vento e as vibrações do solo. Aqui, a vida ainda sangrava quente.
E eu estava faminto por ela.
Meus fios foram lançados em silêncio, conectando árvores, pedras, cascas partidas. Cada um estendido com precisão, como sensores invisíveis prontos para alertar ao menor tremor.
Nada fugia da minha percepção agora.
Mas algo... não vibrava.
Algo se aproximava sem gerar ondas. Como se flutuasse sobre o chão. Como se o mundo evitasse tocar nele.
Me escondi sob uma raiz oca, oito olhos atentos. Meus apêndices retesados. As presas pulsavam veneno.
Então ele surgiu.
Passos lentos, perfeitamente espaçados.
Um homem alto — quase dois metros — trajando um uniforme escuro de tecido reforçado, com um símbolo dourado bordado no ombro: três feras entrelaçadas em círculo — um lobo de presas expostas, um falcão de asas abertas e uma pantera de garras erguidas — como se disputassem o centro do emblema em equilíbrio tenso. Nas suas costas, presa por um suporte reforçado, repousava uma lança com cabo metálico e ponta curva que emitia um brilho interno suave — como se respirasse.
Seus cabelos eram curtos, grisalhos nas têmporas. A pele marcada por rugas profundas. Os olhos, de um cinza opaco, observavam com atenção clínica. Os passos não quebravam galhos. Nem folhas. Como se o solo se moldasse sob ele.
Ele não hesitou. Parou a poucos metros de onde eu estava oculto e ergueu levemente a cabeça, farejando o ar como um predador experiente.
— Tch. Pequeno, mas feio. Vai agradar — murmurou para si, num idioma que eu não compreendia. As palavras ressoaram como sons duros, guturais, sem significado. Mas o tom... esse eu entendi.
Desdém contido. Uma avaliação seca. Prática.
Então, senti algo invadir minha mente.
Não era voz. Não eram palavras. Era uma intenção empurrada através do espaço.
> "Servirá. Você é o suficiente. E está com sorte."
A imagem que me atingiu era clara: uma garota — jovem, de olhos curiosos e mãos estendidas para criaturas que os outros evitavam. Uma mente que pulsava com fome de descoberta. E, em volta dela, feras domadas — mas nenhuma como eu.
> "Ela gosta de aberrações silenciosas. E eu não tenho tempo pra buscar coisa melhor."
Fúria queimou sob minha carapaça. Mas me mantive imóvel.
O homem soltou um suspiro impaciente e lançou algo no chão à minha frente.
Um recipiente esférico, protegido por membranas finas, que pulsava com energia viva. Um concentrado de proteína sintética — ração de elite usada para nutrir feras em treinamento.
Poder. Progresso. Controle.
> "Coma isso. Siga-me. E talvez viva mais do que um ciclo."
Ele já estava se virando. A conversa — se é que se podia chamar assim — havia terminado antes de começar.
> "Minha neta te verá amanhã. Se te rejeitar, corto você em pedaços e volto pra floresta."
Aquelas imagens mentais vinham sem filtro. Verdades nuas, impiedosas.
E ainda assim… havia um tipo de pragmatismo ali. Não era crueldade — era utilidade.
O símbolo em seu ombro tremulava levemente com o vento. Três feras em tensão. Como se aquilo fosse tudo o que ele conhecia.
Fiquei parado.
A esfera diante de mim pulsava lentamente, como um coração.
Me aproximei.
Perfurei a membrana com as presas. O líquido espesso que escorreu tinha gosto metálico, mas era quente — vivo. Entrei em transe por um instante. Meu sistema digestivo, adaptado à biomassa crua, teve de reconfigurar-se para processar a mistura sintética.
A dor veio logo depois.
Não física — mas nervosa. Uma onda elétrica que percorreu meus membros, tensionando placas, contraindo fibras. O Codex não reconhecia a substância como biomassa. Nenhuma mutação foi registrada. Mas minha percepção aguçou. Meus sentidos se esticaram como fios vibrantes.
A proteína se espalhava rápido. Era energia bruta, mas sem raiz. Sem memória.
Efêmera.
Por instantes, senti tudo ao meu redor com nitidez absoluta. Cada gota escorrendo de folhas, cada inseto se debatendo em troncos podres, cada célula da floresta viva.
Depois... apagou.
A fome não cessou — mas o corpo respondeu. Flexível. Pronto.
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O homem retornou ao meu campo visual. Não para falar. Apenas se aproximou, ergueu um pequeno bastão que levava preso à cintura e apontou para o chão.
Surgiu um brilho circular sob mim. Um padrão mágico. Um selo de contenção.
Tentei recuar.
Mas ele não ativou a prisão.
Apenas projetou outra imagem em minha mente:
> "Movimento. Transporte. Academia."
Entendi. Era um meio de locomoção seguro.
Aceitei. Não por submissão.
Mas porque eu queria saber quem era Syel.
A floresta sumiu ao meu redor quando o selo ativou, levando-me com ele em um feixe de luz quente e pressionada.
O mundo girou.
E eu fui arrastado para o próximo ciclo da minha existência.
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📜 Atualização do Codex Devorador
🧬 Presença Humanoide: Analisada — Hostilidade mínima
🕸️ Padrões de dominação: Mentais, não coercitivos
🔍 Oferta: Ração sintética de uso externo (não integrada ao Codex)
⚠️ Comunicação não-verbal recebida
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Entrada psicoemocional: [“Syel”] — Anomalia detectada
💡 Efeitos: Sensibilidade temporária amplificada / Nenhum ganho de biomassa