Cinzas do Passado
A trilha de fuga que serpenteava pelas encostas frias de Drenor era um fio tênue entre a liberdade e a morte. O grupo seguia em silêncio, cada um digerindo o peso do que havia sido feito. Kaela não tirava os olhos da estrada, mas sua atenção estava dividida entre o céu — onde poderiam surgir batedores reais — e Lyra, que dormia recostada no ombro de Riven, envolta em um manto grosso.
O sol nascia com dificuldade. Cinzento. Sem calor. Um presságio do que viria.
— Ela vai aguentar? — perguntou Riven baixinho.
Kaela assentiu, mas sua expressão não escondia a dúvida.
— O corpo... sim. Mas a mente dela ainda está presa naquela cela.
A estrada os levou a um refúgio esquecido: um templo em ruínas onde as sacerdotisas da antiga ordem do Fogo Silencioso realizavam rituais antes da ascensão de Celenya. Kaela sabia que o lugar era considerado amaldiçoado pelos homens da Rainha. Por isso mesmo, seria seguro.
Instalaram-se entre colunas caídas e tapeçarias carcomidas pelo tempo. Enquanto Kaela preparava uma infusão de ervas para Lyra, Riven examinava um mural escondido atrás de uma camada de limo. Nele, havia a imagem de três irmãs envoltas por chamas, mas uma delas tinha os olhos riscados por garras.
— Essa aqui se parece com você.
Kaela olhou de relance. Não respondeu. O símbolo gravado aos pés da figura era o mesmo que carregava no punho desde o nascimento.
Naquela noite, Lyra acordou. Os olhos estavam turvos, mas havia algo novo ali: uma centelha.
— Onde estou? — murmurou.
Kaela correu até ela, ajoelhando-se ao lado da irmã.
— Em segurança. Comigo. Com Riven.
Lyra tocou o rosto da irmã, como se certificando-se de que não era uma ilusão.
— Eu sonhei... sonhei que você gritava meu nome no templo em chamas... — Sua voz falhou. — E então tudo ficou escuro. Por tanto tempo.
Kaela segurou sua mão.
— Está tudo bem agora. Você está livre.
Lyra fechou os olhos, mas não dormiu. Ficou ali, sentindo o mundo ao redor. E quando falou de novo, sua voz vinha de um lugar profundo.
— Eles usaram minha magia. Distorceram tudo. Eu vi... planos. Fragmentos. Celenya sabe que a Chama está morrendo. E quer transferi-la para si, mesmo que isso destrua o mundo.
Riven se aproximou, alarmado.
— Como ela faria isso?
— Com os fragmentos... e com o fogo ancestral. O fogo que queimava antes mesmo dos primeiros reis.
Kaela e Riven trocaram um olhar.
— O Fogo de Miradel — disse Kaela. — Pensava-se que fosse uma lenda.
Lyra olhou para ela.
— Está selado sob o próprio trono de Celenya. E se ela conseguir despertá-lo... nada ficará de pé.
Na manhã seguinte, o céu amanheceu vermelho. Não de sol, mas de fumaça. Kaela subiu ao topo das ruínas e viu ao longe uma coluna negra se elevando onde antes ficava o vilarejo de Trivenor.
— Eles estão queimando tudo — disse Riven atrás dela.
— Procurando por nós — completou Kaela.
— Ou escondendo rastros.
Desceram às pressas. Lyra já estava em pé, com a postura de alguém que voltava lentamente a ser quem era.
— Precisamos ir ao Círculo dos Guardiões. — disse ela. — Lá, talvez encontremos um dos fragmentos antes de Celenya.
Kaela hesitou.
— É território de exílio. Nenhum juramentado pode atravessar sem ser amaldiçoado.
— Eu já fui amaldiçoada — disse Lyra. — Não tenho mais nada a perder.
Riven assentiu.
— Então é pra lá que vamos. Antes que Celenya reúna todos os fragmentos e se torne o fogo encarnado.
A jornada durou dois dias. Subiram trilhas cobertas de espinhos, cruzaram pontes quebradas por antigos terremotos mágicos e enfrentaram neblinas que sussurravam nomes há muito esquecidos. Kaela liderava. Riven protegia. Lyra guiava com sonhos e lembranças reconstruídas.
No terceiro entardecer, chegaram à orla do Círculo. O chão era de pedra vermelha rachada, como se o próprio mundo tivesse sangrado ali. Ao centro, um obelisco dourado marcava o ponto onde o primeiro Guardião caiu.
— Está enterrado ali — disse Lyra. — O fragmento. Ele selou com a própria vida.
Kaela se aproximou com cautela. A Lâmina da Verdade vibrou.
— Há magia aqui. Antiga. Pura. Não vai se abrir com força.
Lyra se ajoelhou e sussurrou uma prece. A mesma que a mãe delas ensinara antes de ser levada pelos soldados da Rainha.
O chão tremeu.
O obelisco rachou.
Uma luz dourada explodiu do interior e revelou o fragmento: uma pequena esfera incandescente, pulsante como um coração.
Kaela a pegou.
O mundo pareceu parar. Sons sumiram. O calor a invadiu como uma onda viva.
E então, uma voz.
"Você carrega o fogo. Queime por justiça."
Ela caiu de joelhos, os olhos em brasa.
Riven correu até ela.
— Kaela!
Ela ergueu o rosto. E sorriu.
— Eu vi. Vi o que Celenya planeja. E vi como detê-la.
Lyra segurou sua mão.
— O que viu?
Kaela fechou os olhos, e as palavras vieram como um juramento:
— O fogo não pertence a um trono. Ele pertence ao povo. Vamos destruí-la. E libertar Solara das chamas da mentira.