Cap 8

 Cinzas do Passado

A trilha de fuga que serpenteava pelas encostas frias de Drenor era um fio tênue entre a liberdade e a morte. O grupo seguia em silêncio, cada um digerindo o peso do que havia sido feito. Kaela não tirava os olhos da estrada, mas sua atenção estava dividida entre o céu — onde poderiam surgir batedores reais — e Lyra, que dormia recostada no ombro de Riven, envolta em um manto grosso.

O sol nascia com dificuldade. Cinzento. Sem calor. Um presságio do que viria.

— Ela vai aguentar? — perguntou Riven baixinho.

Kaela assentiu, mas sua expressão não escondia a dúvida.

— O corpo... sim. Mas a mente dela ainda está presa naquela cela.

A estrada os levou a um refúgio esquecido: um templo em ruínas onde as sacerdotisas da antiga ordem do Fogo Silencioso realizavam rituais antes da ascensão de Celenya. Kaela sabia que o lugar era considerado amaldiçoado pelos homens da Rainha. Por isso mesmo, seria seguro.

Instalaram-se entre colunas caídas e tapeçarias carcomidas pelo tempo. Enquanto Kaela preparava uma infusão de ervas para Lyra, Riven examinava um mural escondido atrás de uma camada de limo. Nele, havia a imagem de três irmãs envoltas por chamas, mas uma delas tinha os olhos riscados por garras.

— Essa aqui se parece com você.

Kaela olhou de relance. Não respondeu. O símbolo gravado aos pés da figura era o mesmo que carregava no punho desde o nascimento.

Naquela noite, Lyra acordou. Os olhos estavam turvos, mas havia algo novo ali: uma centelha.

— Onde estou? — murmurou.

Kaela correu até ela, ajoelhando-se ao lado da irmã.

— Em segurança. Comigo. Com Riven.

Lyra tocou o rosto da irmã, como se certificando-se de que não era uma ilusão.

— Eu sonhei... sonhei que você gritava meu nome no templo em chamas... — Sua voz falhou. — E então tudo ficou escuro. Por tanto tempo.

Kaela segurou sua mão.

— Está tudo bem agora. Você está livre.

Lyra fechou os olhos, mas não dormiu. Ficou ali, sentindo o mundo ao redor. E quando falou de novo, sua voz vinha de um lugar profundo.

— Eles usaram minha magia. Distorceram tudo. Eu vi... planos. Fragmentos. Celenya sabe que a Chama está morrendo. E quer transferi-la para si, mesmo que isso destrua o mundo.

Riven se aproximou, alarmado.

— Como ela faria isso?

— Com os fragmentos... e com o fogo ancestral. O fogo que queimava antes mesmo dos primeiros reis.

Kaela e Riven trocaram um olhar.

— O Fogo de Miradel — disse Kaela. — Pensava-se que fosse uma lenda.

Lyra olhou para ela.

— Está selado sob o próprio trono de Celenya. E se ela conseguir despertá-lo... nada ficará de pé.

Na manhã seguinte, o céu amanheceu vermelho. Não de sol, mas de fumaça. Kaela subiu ao topo das ruínas e viu ao longe uma coluna negra se elevando onde antes ficava o vilarejo de Trivenor.

— Eles estão queimando tudo — disse Riven atrás dela.

— Procurando por nós — completou Kaela.

— Ou escondendo rastros.

Desceram às pressas. Lyra já estava em pé, com a postura de alguém que voltava lentamente a ser quem era.

— Precisamos ir ao Círculo dos Guardiões. — disse ela. — Lá, talvez encontremos um dos fragmentos antes de Celenya.

Kaela hesitou.

— É território de exílio. Nenhum juramentado pode atravessar sem ser amaldiçoado.

— Eu já fui amaldiçoada — disse Lyra. — Não tenho mais nada a perder.

Riven assentiu.

— Então é pra lá que vamos. Antes que Celenya reúna todos os fragmentos e se torne o fogo encarnado.

A jornada durou dois dias. Subiram trilhas cobertas de espinhos, cruzaram pontes quebradas por antigos terremotos mágicos e enfrentaram neblinas que sussurravam nomes há muito esquecidos. Kaela liderava. Riven protegia. Lyra guiava com sonhos e lembranças reconstruídas.

No terceiro entardecer, chegaram à orla do Círculo. O chão era de pedra vermelha rachada, como se o próprio mundo tivesse sangrado ali. Ao centro, um obelisco dourado marcava o ponto onde o primeiro Guardião caiu.

— Está enterrado ali — disse Lyra. — O fragmento. Ele selou com a própria vida.

Kaela se aproximou com cautela. A Lâmina da Verdade vibrou.

— Há magia aqui. Antiga. Pura. Não vai se abrir com força.

Lyra se ajoelhou e sussurrou uma prece. A mesma que a mãe delas ensinara antes de ser levada pelos soldados da Rainha.

O chão tremeu.

O obelisco rachou.

Uma luz dourada explodiu do interior e revelou o fragmento: uma pequena esfera incandescente, pulsante como um coração.

Kaela a pegou.

O mundo pareceu parar. Sons sumiram. O calor a invadiu como uma onda viva.

E então, uma voz.

"Você carrega o fogo. Queime por justiça."

Ela caiu de joelhos, os olhos em brasa.

Riven correu até ela.

— Kaela!

Ela ergueu o rosto. E sorriu.

— Eu vi. Vi o que Celenya planeja. E vi como detê-la.

Lyra segurou sua mão.

— O que viu?

Kaela fechou os olhos, e as palavras vieram como um juramento:

— O fogo não pertence a um trono. Ele pertence ao povo. Vamos destruí-la. E libertar Solara das chamas da mentira.