Fulgor Silencioso
Kaela despertou com o som do vento assobiando entre as ruínas do Círculo dos Guardiões. Por um instante, não soube onde estava. A lembrança do fragmento ainda palpitava em sua mão, como se tivesse se fundido à sua carne. O sol nascia, tingindo o céu com um dourado frio. Era o segundo dia desde que deixaram a cripta ancestral com a promessa de resistir à rainha.
Lyra ainda dormia, o rosto sereno pela primeira vez em anos. Riven montava guarda perto da trilha, olhos atentos ao vale abaixo.
— Dormiu? — ele perguntou, sem se virar.
Kaela se aproximou, envolvendo o manto ao redor do corpo.
— Não. Senti o fragmento queimando em mim a noite inteira. Como se... algo estivesse despertando.
— Talvez esteja — disse ele. — Você carrega uma parte da antiga chama agora. E ela não pertence a ninguém.
— Ainda assim, sinto como se ela me julgasse. Como se esperasse algo de mim.
Riven se virou então, encarando-a.
— Talvez espere coragem.
Antes que Kaela respondesse, um corvo pousou no parapeito da ruína. Trazia uma tira de tecido azul amarrada à perna: símbolo dos Mensageiros da Resistência.
Riven retirou o pequeno pergaminho e leu, franzindo a testa.
— Varyn está vivo. E está convocando os últimos remanescentes da Ordem dos Lumes. Quer encontrar-se conosco no antigo Mercado de Brann.
Kaela arregalou os olhos.
— Varyn? O mestre da Forja Oculta?
— Sim. Ele diz que tem algo que pode impedir Celenya de acessar o Fogo de Miradel. Uma chave antiga, feita com essência dracônica.
— Então vamos até ele. Não temos tempo a perder.
A viagem até Brann durou um dia inteiro. O mercado abandonado parecia assombrado: barracas destruídas, estátuas partidas, estandartes queimados. Mas sob a fonte central, um túnel levava às antigas catacumbas de contrabando. Ali, Varyn os esperava.
O velho ferreiro parecia ainda mais curvado do que nas histórias. Os cabelos estavam brancos como cinza e os olhos, embora turvos, ainda brilhavam com intelecto.
— Kaela Viren — disse ele, com reverência. — Eu vi sua chegada nos ecos do metal.
Ela se curvou respeitosamente.
— Dizem que forjou a primeira armadura da rainha. E que depois foi banido por recusar-se a moldar armas contra os próprios filhos do fogo.
Varyn assentiu.
— Não moldo para tiranos. Mas agora, moldarei para você.
Ele os guiou até uma sala onde uma mesa de pedra sustentava um objeto envolto por panos negros. Ao desvendá-lo, Kaela viu: uma lâmina curva feita de aço vítreo, com fios de luz dançando por dentro como fumaça viva.
— Isto é mais do que uma arma — explicou Varyn. — É um Condutor. Pode absorver a energia do fragmento e canalizá-la. Mas exige equilíbrio. Um coração dividido, ou um espírito instável, será consumido.
Kaela tocou a lâmina. Um calor suave percorreu seus dedos.
— Ela responde a mim.
— Porque sua alma está acesa — disse Varyn. — Mas lembre-se: não queime por raiva. Queime por justiça.
Lyra, sentada no canto da sala, observava tudo com silêncio. Quando Varyn se retirou, ela se aproximou de Kaela.
— Você tem certeza de que consegue controlá-la?
— Não — respondeu Kaela com honestidade. — Mas preciso tentar. É isso ou deixamos Celenya dominar o Fogo de Miradel.
— Eu posso ajudar — disse Lyra. — Recuperei parte do que me tiraram. A prisão não quebrou minha magia. Apenas a adormeceu. Se canalizarmos juntas, talvez você não precise suportar tudo sozinha.
Kaela sorriu, emocionada.
— Obrigada, irmã.
Naquela noite, um trovão ecoou ao longe. Riven entrou apressado.
— Temos companhia. Espiões da Rainha. Dez homens. Estão vasculhando as ruínas de Brann.
Kaela olhou para a nova lâmina. Pegou-a com firmeza.
— Então vamos recebê-los.
O grupo subiu até a superfície e se posicionou entre os escombros. A escuridão favorecia os espiões, mas não por muito tempo.
Kaela ergueu a Condutora. A luz do fragmento acendeu no punho da espada. Os invasores congelaram ao ver a claridade bruxuleante.
— Pela Ordem da Rainha Celenya, rendam-se! — gritou o comandante dos espiões.
— Diga à sua rainha — retrucou Kaela, com a voz firme — que o fogo está acordando. E ele não se curva.
O combate começou.
Riven avançava com precisão, derrubando soldados com suas correntes encantadas. Lyra conjurava escudos de calor, desviando flechas e feitiços. Kaela era um relâmpago em meio à noite. A lâmina nova dançava com ela, iluminando as sombras com cada golpe certeiro.
Quando o último inimigo caiu, o silêncio se espalhou. O céu parecia mais claro. Como se a própria noite recuasse diante da chama.
Kaela ofegava, mas sorriu.
— Ainda somos poucos... mas já não estamos sozinhos.
Lyra se aproximou e tocou o ombro dela.
— A resistência está acendendo.
Kaela olhou para o leste.
— E quando o sol nascer, será com fogo.