Chama Convocada
Na alvorada seguinte, Elyrion despertava para o som dos sinos de guerra — algo que não soava há mais de vinte anos. Nas torres, bandeiras neutras tremulavam lado a lado com símbolos antigos: a rosa em brasas, o lobo dos desertos, o olho dos vigias do norte. As antigas casas da Velha Aliança estavam ouvindo o chamado.
Kaela, ainda vestindo o manto da Assembleia, permaneceu de pé na sacada do salão central. Observava os mensageiros partindo em cavalos e falcões encantados, levando sua convocação para os reinos livres — ou ao que restava deles.
Ao lado dela, Lyra lia a resposta mágica de um emissário em Rael-Seth, o reino dos dômeos.
— Eles juram apoio — disse Lyra. — Enviarão cinco navios, e um grupo de conjuradores especializados em defesa mental. Parece que as ações de Celenya começaram a ameaçá-los também.
— A escuridão força alianças que antes não se permitiriam — comentou Sira. — Mas não devemos confiar em promessas com ouro demais. O medo move mais do que a honra.
Kaela assentiu, mas seus olhos estavam distantes.
— Ainda falta um nome. O mais importante. E não temos sinal dele.
Riven se aproximou, cruzando os braços.
— Você ainda acha que o povo de Vael-Mir responderá?
— Não só acho — ela respondeu. — Eu preciso que respondam.
Naquela tarde, Kaela desceu à cripta sob Elyrion — uma câmara circular onde os conselheiros mais antigos meditavam em silêncio, rodeados por brasas eternas. Ao centro, repousava o espelho de Vehris: um artefato milenar usado para convocar memórias e vozes do passado.
Lyra a havia avisado que usá-lo era perigoso, pois o espelho não só refletia, mas testava.
Kaela ajoelhou-se diante dele e colocou o Orun na base da estrutura.
— Eu invoco o sangue que me criou. A chama que me nomeou. Desejo respostas... e coragem para ouvi-las.
A superfície líquida brilhou.
A mãe de Kaela surgiu na imagem, mais jovem do que ela lembrava, segurando duas crianças: Kaela e Lyra, ainda bebês. Atrás dela, figuras encapuzadas discutiam sobre esconder a linhagem, partir os fragmentos do Orun e apagar seus rastros.
— Se ela viver, trará esperança. Mas também morte — dizia um dos anciãos. — Talvez devêssemos encerrar o ciclo agora.
— Não — respondeu a mãe, firme. — Uma chama apagada antes da hora não ilumina ninguém. Ela sobreviverá. E um dia... ela lembrará.
A imagem se desfez.
Kaela se ergueu em silêncio. E sussurrou:
— Eu lembro.
Na mesma noite, Elyrion abriu as portas do Salão do Juramento — um anfiteatro imenso esculpido em cristal encantado, capaz de transmitir imagens e sons para todos os continentes aliados.
Kaela caminhou até o centro, com o Orun em mãos. Milhares assistiam — presencialmente ou através de espelhos de transmissão. Crianças, guerreiros, curandeiros, velhos magos.
Ela falou:
— Por muito tempo, acreditamos que silêncio era segurança. Que se nos escondêssemos, viveríamos. Mas a Coroa não quer silêncio — ela quer submissão. Não quer ordem — quer obediência sem alma.
O Orun se ergueu, brilhando sobre sua cabeça.
— Eu sou Kaela, filha da Chama, herdeira daquilo que foi partido. Não por direito de sangue... mas por escolha. Escolhi resistir. E se você também escolhe — então você é parte da chama.
Elyrion rugiu em resposta.
Espelhos brilharam por todo o continente.
A resistência, até então escondida, começou a se erguer.
Nos salões privados, no entanto, a tensão crescia. Riven discutia com Lyra e Sira sobre os riscos da convocação.
— Foi grandiosa — disse Lyra — mas agora virão atrás de cada vila onde suspeitarem que haja aliados. A Coroa é impiedosa.
— Por isso precisamos preparar não só o ataque — respondeu Kaela ao entrar — mas também os refúgios. Cada cidade que responder será protegida. Eu quero enviar conjuradores, médicos, abrigos móveis. Ninguém ficará para trás.
Sira cruzou os braços, tensa.
— Isso é lindo em teoria, Kaela. Mas exige recursos que nem mesmo Elyrion possui mais.
Kaela olhou para o Orun, pensativa.
— Talvez esteja na hora de pedir à relíquia mais do que apenas luz.
Riven se aproximou.
— Você quer ativá-lo?
— Quero conversar com ele. Quero saber o que o Orun é capaz de fazer quando guiado por alguém que deseja proteger — e não destruir.
Na madrugada, sozinha, Kaela voltou ao topo da torre de Elyrion.
O Orun flutuava diante dela, girando lentamente. Sua luz dançava, quase curiosa.
Ela colocou a mão sob ele e sussurrou:
— Mostre-me o que posso fazer... se não for guiada pelo medo.
A luz explodiu — mas não em força destrutiva. Mapas surgiram ao redor. Linhas de energia conectando pontos esquecidos do continente. Locais de poder, selos adormecidos, artefatos escondidos.
E, ao fundo, uma presença.
Uma voz.
— Para proteger, primeiro é preciso despertar o que dorme sob o próprio nome.
Kaela caiu de joelhos, sem fôlego.
Ela compreendeu.
Precisava voltar à origem do primeiro fragmento.
Precisava ir a Vael-Mir.