O quarto de hospital estava silencioso, exceto pelo leve bip do monitor cardíaco e o zumbido constante do ar-condicionado. O homem de olhos azuis observava a mulher à sua frente como quem tentava decifrar um enigma de mil peças.
Ela estava parada, elegante mesmo com a simplicidade de seu vestido claro e os cabelos meio presos em um coque solto. Havia algo nela que não combinava com a noite anterior — algo sóbrio, só dela. O tipo de presença que impunha respeito sem esforço.
— Você salvou minha vida — ele disse com a voz grave, ainda um pouco rouca pelo esforço. — E eu pretendo pagar essa dívida.
Ela ergueu as sobrancelhas, cruzando os braços devagar.
— Não precisa me pagar nada. O que fiz, faria por qualquer pessoa. E você... é só um desconhecido.
O jeito como ela disse aquilo o incomodou mais do que esperava.
— Um desconhecido? — repetiu, como se testasse a palavra. — Então você prefere que continuemos assim?
— Prefiro. — Ela o encarou com frieza, mesmo sabendo que seu coração batia acelerado. — Até porque você me pediu para esquecer que nos conhecemos. Acho justo que seja mútuo.
O silêncio se estendeu entre os dois. Ele não estava acostumado com isso. Não com mulheres que o desarmavam com uma frase. Não com mulheres que não queriam absolutamente nada dele.
— Qual o seu nome? — ele perguntou, ainda esperando quebrar aquela barreira.
Ela sorriu de canto, um gesto que parecia mais irônico do que gentil.
— Digamos que, por hoje, eu seja apenas... "ninguém". Desejo melhoras — disse, antes de se virar.
Ele quis protestar, mas ficou em silêncio. Vê-la se afastar, com passos firmes e decididos, o deixou mais desconcertado do que todo o sangue que perdeu na noite anterior.
A porta se fechou.
E ele, pela primeira vez em muito tempo, sentiu algo além do controle: curiosidade real. Fascínio.
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Horas depois, ainda no hospital, ele digitava no celular com firmeza. Seu assistente pessoal, Bernard, respondeu em segundos.
— Preciso de um relatório completo sobre uma mulher.
— Nome? — veio a pergunta.
Ele olhou para a tela por alguns segundos.
— Não sei o nome. Mas tenho o rosto. — E anexou uma imagem das câmeras de segurança da entrada do hospital. Ela havia passado por lá na noite anterior.
— Encontre tudo o que puder. Trabalho, vida pessoal, círculo social. Tudo.
Bernard não perguntou o motivo. Já estava acostumado. O CEO da Valmont Capital Group, um dos maiores conglomerados de investimentos internacionais, raramente se interessava por alguém. Quando se interessava, havia um bom motivo.
E dessa vez, ele mesmo não sabia explicar qual era.
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Nos dias que se seguiram, ele se recuperou rapidamente, com auxílio dos melhores médicos contratados para não levantar suspeitas. Saiu do hospital em menos de uma semana e seguiu direto para sua cobertura em Milão, onde os seguranças já esperavam com informações.
— Conseguiu algo? — perguntou, servindo-se de uma dose de uísque.
Bernard assentiu, entregando uma pasta preta.
— O nome dela é Laura Martins. Brasileira. Tem vinte e nove anos. Filha única de agricultores que ainda vivem em uma fazenda no interior do Brasil. Mudou-se para a capital com dezesseis anos para estudar moda. Trabalhou em cafeterias, lojas, eventos, e se formou com honra em Design de Moda e Gestão de Negócios. Durante a faculdade, morava em um quarto alugado com mais três pessoas. Nada que chame atenção demais... exceto pelo depois.
Ele folheou os papéis com atenção. Havia fotos da casa dos pais, recortes de jornais regionais, publicações em redes sociais da amiga que a acompanhava na boate — a tal Giulia.
— O que significa “exceto pelo depois”? — perguntou, focando nos olhos do assistente.
— Cinco anos atrás, ela sumiu do radar público. Apareceu pouco tempo depois morando em um dos apartamentos mais caros de Florença. Um apartamento que, aliás, está em nome de uma empresa chamada Lumina S/A.
— Conheço esse nome. — Ele franziu o cenho, intrigado.
— Deve conhecer. É a marca de moda mais comentada dos últimos dois anos. Veste artistas internacionais, está nos principais desfiles e revistas. Tudo extremamente elegante, acessível, e com impacto social. A marca ficou famosa também por não revelar o nome da CEO. A imagem pública pertence à vice-diretora, Giulia Franchetti.
Ele se recostou, absorvendo a informação.
— E você acha que a Laura é a verdadeira CEO?
— Não posso afirmar com 100% de certeza, senhor. Mas as conexões são fortes. Ela é designer registrada de várias peças da Lumina. O estilo é o mesmo que ela desenvolvia desde a faculdade. E... — Bernard pausou. — A imagem da CEO é uma incógnita. Uma decisão estratégica que, agora me parece, serve apenas para proteger a identidade dela.
Ele pegou um dos esboços anexados na pasta. Era um vestido vermelho, longo, de corte simples e elegante, que ele reconheceu imediatamente. Tinha visto uma versão da peça na última capa da Vogue.
Laura era a mente por trás de tudo.
Linda, poderosa, brilhante — e completamente invisível.
— Que tipo de mulher esconde tudo isso do mundo?
— Alguém que tem seus motivos — respondeu Bernard, com neutralidade.
Ele não disse em voz alta, mas estava ainda mais atraído. Mulheres sempre correram atrás dele. Queriam saber seu nome, sua fortuna, suas conexões. Usavam vestidos caros e sorrisos ensaiados, oferecendo corpos em troca de status.
Mas Laura... se recusou até a dizer o nome.
E agora era uma das mulheres mais influentes do mundo da moda.
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Naquela noite, enquanto a cidade dormia sob a chuva leve que caía sobre os telhados de Milão, ele ficou de pé diante da janela da cobertura, olhando os carros lá embaixo com os pensamentos longe.
Laura Martins.
Ela havia dito que não queria nada dele. Mas aquilo não o libertava. Pelo contrário: o prendia mais ainda.
Ele não gostava de dever nada a ninguém. Muito menos a alguém como ela. E não se tratava apenas de orgulho. Era um princípio. Ele era o tipo de homem que fazia questão de manter tudo sob controle — a imagem, os negócios, as emoções.
Mas algo naquela mulher o havia desestabilizado de um jeito incômodo. E, em sua cabeça, aquilo precisava de resposta.
Precisava vê-la de novo.
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Na manhã seguinte, Bernard entrou no escritório com mais uma pasta.
— Temos um desfile beneficente da Lumina programado para a próxima semana, em Florença. Convites limitados, apenas para investidores, artistas e imprensa.
— E a vice-diretora estará lá?
— Sim, Giulia Franchetti apresentará os modelos. Mas... há rumores de que a CEO verdadeira pode estar presente, discretamente.
Ele sorriu, devagar.
— Excelente. Reserve meu nome na lista de convidados.
— Nome verdadeiro ou um dos seus pseudônimos?
— Melhor um pseudônimo — disse, olhando para o reflexo no espelho do gabinete. — Afinal... ninguém precisa saber quem eu sou ainda.
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Enquanto isso, em Florença, Laura finalizava os ajustes de última hora para o desfile.
Estava concentrada, afundada em tecidos, costuras e croquis, tentando ignorar os pensamentos que a perseguiam desde aquela manhã no hospital.
Aquela sensação estranha. Aqueles olhos azuis.
Ela deveria ter se sentido aliviada por tê-lo deixado para trás. Mas algo dentro dela ainda latejava como uma ferida aberta. Talvez fosse raiva... talvez fosse medo. Ou algo que ela não queria nomear.
Não sabia que ele a procurava.
Nem imaginava que, em breve, estariam frente a frente novamente.
E que, dessa vez, nada seria simples como esquecer.