Capítulo 15

As paredes de pedra do castelo eram frias, mas o pátio interno onde Hakui treinava com seu pai estava banhado pelo sol da manhã. O castelo, com suas torres imponentes e bandeiras tremulando ao vento, parecia proteger a pequena figura do menino que brincava com adagas de madeira. Hakui tinha apenas 5 anos, mas já levava a sério o treinamento que o pai lhe oferecia.

— Segure a adaga assim, Hakui — disse seu pai, sorrindo. Ele era um homem alto e forte, e apesar das marcas de batalhas em seu semblante, seus olhos – os mesmos olhos que Hakui possuía – brilhavam com paciência e carinho. Aqueles olhos eram um símbolo do poder visual que corria em sua família, uma habilidade rara e respeitada que Hakui mal começava a entender.

O pequeno Hakui segurava as adagas de madeira com ambas as mãos, tentando imitar a postura do pai. As paredes altas do castelo ao redor deles faziam o som do treinamento ecoar, como se a própria estrutura estivesse assistindo ao momento.

— Eu quero ser forte como você, papai — Hakui disse, olhando para cima, os olhos brilhando com admiração.

O pai riu suavemente, um som que ecoou pelas paredes de pedra do castelo. — E você será, Hakui. Mas lembre-se, ser forte não é apenas sobre como usar uma arma. — Ele ajoelhou-se, ficando à altura do filho, e seu olhar tornou-se sério, os olhos brilhando intensamente com o poder visual. — Para ser verdadeiramente forte, é preciso saber enxergar o que os outros não veem. A verdadeira força não está apenas na espada, mas no coração que sabe o que é certo.

Hakui inclinou a cabeça, tentando entender. — Coração?

— Sim — o pai respondeu, sorrindo, mas seus olhos mantiveram aquele brilho intenso e quase hipnótico. — A força verdadeira vem de proteger aqueles que você ama e de lutar pelo que é certo, mesmo quando é difícil. Nosso poder visual é uma bênção, mas também uma responsabilidade. Use-o, não para destruir, mas para proteger.

Aquelas palavras ficaram gravadas na mente do pequeno Hakui, mesmo que ele não compreendesse todo o significado. Ele continuou a brincar com as adagas de madeira, sentindo-se seguro sob o olhar atento de seu pai e as altas muralhas do castelo.

Essa seria a última memória de Hakui com seu pai no castelo que os abrigava. Pouco tempo depois, ele partiu para a guerra e nunca mais voltou. Mas enquanto Hakui olhava para as torres do castelo, lembrando-se dos olhos púrpura de seu pai, ele sabia que as lições daquele dia o guiariam pelo resto de sua vida.

*

Hakui despertou com o coração acelerado, as palavras de seu pai ainda ecoando em sua mente. O brilho daqueles olhos tão familiares permanecia em sua memória, e por um momento, ele se esqueceu de onde estava, perdido entre o passado e o presente. Mas então, ao encarar o teto de madeira de seu alojamento na academia, a realidade voltou como um golpe frio.

Ele sabia que dia era.

Levantou-se da cama, sentindo o peso do silêncio que pairava sobre o dormitório. Seus companheiros de equipe ainda dormiam, exaustos dos treinos e missões. O sol mal havia nascido, e a luz da manhã se esgueirava pela janela, criando sombras que pareciam dançar nas paredes. Hakui passou a mão pelos cabelos negros, tentando afastar a sensação sufocante que apertava seu peito.

— Hoje é o dia — murmurou para si mesmo, como se precisasse reafirmar. Era o aniversário de morte de seu pai, o dia em que o reino perdera um de seus melhores guerreiros.

E era o único dia do ano em que Hakui estava dispensado do treinamento. Uma espécie de tradição não oficial que Ralvor, o professor, respeitava em silêncio. "Até os mais fortes precisam de um momento para lembrar", ele costumava dizer.

Hakui vestiu-se lentamente, sentindo a frieza do tecido contra sua pele. Não se preocupou em arrumar o cabelo ou sequer pegar sua espada. Ele sabia que não a usaria hoje. Seu corpo movia-se por inércia enquanto caminhava pelo corredor vazio, os passos ecoando no silêncio matinal da academia.

Ao chegar ao pátio, parou por um momento, respirando fundo. O ar estava frio, e o vento carregava o cheiro das montanhas que cercavam a academia. Ele olhou para o céu, lembrando-se do castelo que chamava de lar, dos dias em que seu pai o treinava pacientemente. Aquele castelo que agora estava vazio, uma sombra do que já fora.

Hakui fechou os olhos, permitindo-se sentir a dor que tentava reprimir o ano todo. Hoje é o dia em que você foi embora, pai, pensou, as mãos fechando-se em punhos ao lado do corpo. O dia em que eu prometi que seria digno de carregar seu nome.

Ele passou a mão em seus cabelos lembrando da noite anterior e não conseguia decidir se o que fizeram fora um erro. Ele sabia que devia focar em ficar mais forte e proteger o legado do seu pai, mas, por outro lado… Por outro lado, seu pai também o ensinara a importância de ter alguém a quem amar e proteger. 

*

Kaledus ainda estava dolorido, mesmo que os curandeiros de sangue tivessem fechado seus ferimentos. Os hematomas teimavam em permanecer, cobrindo seus braços e pernas, lembranças vivas do torneio. Quando o professor Ralvor lhe deu uma folga, ele suspirou, mas o alívio não veio por completo.

— Você precisa descansar — disse Ralvor, com um leve aceno de cabeça. — Não é todo dia que temos a chance de nos recuperar.

Kaledus agradeceu, mas logo seu olhar foi direto para Sansara. Ela estava ali, distraída, com um leve sorriso nos lábios. Algo estava diferente nela, algo que ele ainda não conseguia processar direito, mas que o deixava inquieto desde a noite anterior.

— Vamos? — ele perguntou, gesticulando para que ela o acompanhasse, esperando aquele brilho habitual em seu olhar quando o via. Mas dessa vez, a resposta não veio imediatamente. Sansara olhou para ele, seus olhos vacilando por um segundo antes de assentir. — Claro, vamos — ela respondeu com uma leve hesitação na voz.

Kaledus sentiu o estômago apertar. Não era apenas a hesitação dela. Era algo mais profundo, algo que ele já suspeitava, mas não queria admitir. Ele já sabia o que havia acontecido entre Hakui e Sansara na noite anterior. Ela estava diferente, mais distante, e ele não sabia como lidar com isso. O ciúme queimava no fundo do seu peito, transformando cada passo que dava ao lado dela em um lembrete amargo de que Hakui havia ficado com ela.

— Você parece... distraída — Kaledus disse, tentando esconder o veneno em sua voz.

Sansara olhou para ele, surpresa, mas logo desviou o olhar. — Desculpe, só estou pensando em tudo o que aconteceu ontem. Foi... muita coisa.

— Ontem — ele repetiu, sentindo o gosto amargo das palavras. — Muita coisa, sim. — disse com um olhar triste.

Enquanto caminhavam lado a lado, Kaledus não conseguia evitar a sensação de que havia perdido a única batalha com que se importava, ele cerrou os punhos com força, mas Ravol interrompeu o momento de constrangimento entre eles.

— E você, mocinha, onde pensa que vai?

Sansara parou, surpresa. — Eu... eu só estava... — começou, mas o olhar firme do professor fez com que ela ficasse em silêncio.

— Hoje, o treino será só para você — ele declarou, e o tom de sua voz não deixava espaço para discussão.

Kaledus não pareceu desconfiar de nada. Ele deu de ombros e sorriu para Sansara. — Vai ficar tudo bem. Nos encontramos mais tarde. — E com isso, ele saiu, deixando-a sozinha com o professor.

Quando o som dos passos de Kaledus desapareceu, Ralvor caminhou até uma mesa de armas e apoiou as mãos nela, olhando diretamente para Sansara. — Fez bem em não mostrar para a multidão o que você é — ele disse, a voz baixa e séria. — Nem todos teriam o mesmo entusiasmo que o príncipe regente.

Sansara recuou instintivamente, fazendo menção de fugir, mas Ralvor levantou a mão num gesto apaziguador. — Não se preocupe. Eu não vou contar nada ao príncipe.

— Por quê? — Sansara perguntou, a desconfiança evidente em seus olhos. — Por que não me denunciar?

— Porque você tem o direito de decidir seu próprio destino — respondeu Ralvor. — Mas precisa treinar sua habilidade, Sansara. Se não aprender a controlá-la, não conseguirá mantê-la em segredo por muito tempo. — Ele fez uma pausa, como se estivesse ponderando suas próximas palavras. — Sei que esconder isso é considerado traição, mas acredito que você merece ter a chance de descobrir por si mesma quem quer ser.

Com isso, ele se abaixou e puxou algo debaixo da mesa de armas. Quando se endireitou novamente, segurava uma pequena gaiola. Dentro dela, estava um esquilo totalmente branco, com olhos cor de rosa que piscavam curiosamente para ela. Mas o que chamou sua atenção foram as pequenas asas que o animal abriu ao esticar os bracinhos.

— Tome — disse Ralvor, entregando a gaiola a Sansara. — É seu. Você precisa aprender a controlá-lo, e então poderá praticar com algo maior. Esse é um skinus, uma criatura rara das montanhas. Eles protegem o vale e suas plantas. Se tiver sorte, ele pode ter uma habilidade especial. Mas só descobrirá isso se ele confiar em você.

Sansara olhou para o pequeno animal, encantada e assustada ao mesmo tempo. — E o que eu faço agora?

— Treine — Ralvor respondeu com um leve sorriso. — Passe um tempo com ele, conheça-o. Deixe-o se acostumar com você. E se alguém perguntar, diga que o ganhou como prêmio do torneio. — Ele virou-se para ir embora, mas parou por um instante, olhando para ela por sobre o ombro. — E, Sansara... não deixe que ninguém decida quem você deve ser.

E então, ele se foi, deixando Sansara sozinha na arena. Ela olhou para o pequeno skinus, que a observava com curiosidade. Sentiu uma faísca de esperança se acender em seu peito. Talvez, apenas talvez, ela encontrasse o controle que tanto precisava.

*

Sansara suspirou profundamente, olhando para o pequeno dkinus que a encarava de volta com seus olhos cor de rosa brilhantes. Desde que o professor Ralvor lhe entregara a criatura, ela tentara de tudo para fazer com que ele obedecesse, mas o pequeno ser parecia mais interessado em se limpar ou bater as asas inutilmente do que prestar atenção nela.

— Vamos lá, só mais uma vez, por favor? — ela implorou, estendendo a mão. O skinus apenas virou o rosto, ignorando-a completamente.

Frustrada, Sansara decidiu procurar ajuda. Sabia que Kaledus era um poço de informações sobre criaturas elementais, então o encontrou na arena de treinamento, onde ele estava afiando sua espada, como se esperasse a próxima batalha.

— Preciso de ajuda com o skinus — disse Sansara, sem rodeios.

Kaledus ergueu uma sobrancelha, parecendo intrigado. — Não é muito complicado, sabia? É uma criatura simples. Gosta de nozes e de brincar. Tente oferecer nozes em troca de alguma coisa.

— Nozes? — Sansara perguntou, surpresa. — É só isso?

— Sim — respondeu Kaledus, o tom de sua voz mais frio do que o normal. — Mas tem um detalhe: o skinus é uma criatura elemental. Ele deve entender seus pedidos, especialmente se você usar um pouco daquela bruxaria que você parece conhecer tão bem.

A forma como ele disse “bruxaria” fez Sansara hesitar. Kaledus sempre a apoiara, sempre a elogiara por suas habilidades e coragem, mas agora ele parecia distante, quase irritado. Ela abriu a boca para perguntar, mas fechou novamente. Não agora, pensou. Precisava focar em aprender a controlar o skinus, sua sobrevivência dependia disso.

— Obrigada — ela disse, forçando um sorriso.

— Boa sorte — respondeu Kaledus, voltando a afiar a espada sem olhar para ela.

Sansara deixou a arena e foi em direção ao bosque, tentando afastar a sensação de inquietação que a conversa com Kaledus deixara em seu coração. Eu preciso de nozes, ela repetiu para si mesma, tentando focar na tarefa. Encontrou algumas nozes caídas sob uma grande árvore e apanhou o máximo que pôde.

De volta à arena, ela se ajoelhou diante do skinus, que a olhou com curiosidade. — Tudo bem, amiguinho — disse, estendendo uma noz. — Vamos fazer uma troca? Se eu te der isso, você pode me ajudar?

O skinus inclinou a cabeça, farejando a noz. Sansara sorriu e sussurrou algumas palavras, um pequeno encantamento que aprendera quando criança. Para sua surpresa, o skinus pegou a noz e voou até sua mão, pousando suavemente em seu braço.

— Acho que estamos fazendo progresso — ela disse, acariciando o pêlo macio da criatura, sentindo uma pequena faísca de esperança se acender em seu coração.

*

O salão do castelo estava iluminado por tochas que lançavam sombras dançantes nas paredes de pedra antiga. A enorme mesa de carvalho, esculpida com os emblemas das casas nobres, estava rodeada pelos lordes de guerra, homens que há muito tempo serviam ao reino e conheciam os horrores da batalha. Seus rostos eram severos, marcados pelo peso das decisões que precisavam tomar.

— O torneio foi uma verdadeira loucura — um dos lordes declarou, batendo o punho na mesa. — Como ele pôde colocar uma quimera em uma arena com crianças?

— Não foi apenas loucura — respondeu outro, um homem de cabelos grisalhos e cicatrizes que desfiguravam metade de seu rosto. — Foi um teste. E a garota... ela conseguiu. Conseguiu domar a criatura.

O silêncio que se seguiu era pesado. Cada um dos homens presentes sabia o que isso significava.

— O príncipe regente sempre falou sobre querer domadores de bestas — disse um terceiro lorde, esfregando a barba rala. — Mas agora, parece que ele finalmente tem uma.

— Uma? — o lorde grisalho riu, mas não havia humor em seu olhar. — Ele não quer apenas uma. Ele quer a mais poderosa. Ele quer a garota.

O mais velho entre os lordes, um homem de olhar perspicaz e manto escuro, inclinou-se para a frente, com os dedos tamborilando na superfície da mesa. — Há muitos anos, o pai do príncipe enviou seu melhor cavaleiro para um reino distante. O objetivo era roubar uma criança. Uma princesa, filha direta do velho rei de Fhalr. Vocês lembram disso?

Todos assentiram, o episódio era uma lenda que muitos haviam escutado, mas poucos acreditavam realmente.

— Essa garota — continuou o lorde — nunca deveria ter sobrevivido. Mas ela foi trazida aqui e criada como uma de nós. Mesmo que ela não tenha despertado os poderes ainda, está claro que os possui. — Ele fez uma pausa, os olhos frios se fixando na chama de uma vela. — Vimos a prova disso. Ela conseguiu entender o que a quimera precisava. Isso não é algo que se aprende; é algo que está no sangue.

— A linhagem dos antigos domadores — murmurou um dos homens, como se as palavras fossem pesadas demais para serem ditas em voz alta. — Digno de alguém da linha direta de sucessão ao trono inimigo.

— Agora o príncipe planeja usá-la para seu próprio ganho — disse o lorde grisalho, sua voz amarga. — Se ele conseguir que ela se case com ele, terá direito de governar os dois reinos. Ele não terá apenas domadores de bestas... terá um exército imparável.

— E os ventos da guerra sopram a nosso favor mais uma vez — murmurou o mais velho, um leve sorriso se formando em seus lábios. — Pois com ela ao lado do príncipe, finalmente poderemos acabar com essa guerra e governar em paz.

A reunião terminou em silêncio, cada lorde perdido em seus próprios pensamentos. Mas enquanto as tochas queimavam, uma coisa era certa: os ventos estavam mudando, e o destino de Sansara, um peão no tabuleiro de um jogo muito maior do que ela poderia imaginar.